Dezoito anos, um metro e oitenta e nove de altura. O caçula cresceu,
apesar do meu esforço para conservá-lo criança. Assim que tirou a carta de
motorista, começou a sair com uma colega do cursinho pré-vestibular. Saiu uma,
duas, dez vezes. Minha preocupação era múltipla: dos perigos da cidade grande aos
acidentes de trânsito. A insônia me encontrou várias vezes, lá estava eu a
lamentar a passagem do tempo. Quando o som da chave a girar na porta me
abençoava, eu fingia dormir no sofá da sala e sossegava com seu beijo em minha
testa: - Oi, Gorda, vá dormir! - Era assim que ele me chamava, apesar de eu ter
emagrecido seis quilos desde o último verão.
Era sábado, fui ao supermercado, depois ao cabeleireiro.
Levei o cãozinho ao petshop. Cheguei em casa carregada de compras e a imaginar
o que cozinharia para o almoço de domingo. Lá estava ele, sentado no sofá e sem
camisa. – Gorda, você pode passar minha camisa branca?
Deixei as compras de lado, o cachorro a mastigar a
gravatinha que ganhou no petshop. Tudo por fazer e eu a passar caprichosamente
a camisa branca. Saiu e ainda levou duzentos reais, bastou um sorriso e abri a
carteira.
Outra noite longa, assisti a dois filmes, bebi três taças de
vinho tinto, roí as unhas que tinha feito naquela tarde. Eram três da manhã
quando ouvi risos e o som da chave a girar na porta. Fiz meu número: fingi
estar dormindo.
Ao invés do beijo na testa, ganhei um cutucão no ombro: -
Gorda, acorda, esta aqui é a Ju!
Ju era a tal garota. Magra feito um caniço, o nariz
desproporcional ao tamanho do rosto. Sobrancelhas que, certamente, jamais
haviam visto uma pinça. A saia era tão curta que, arrisco dizer: ela estava
quase nua. E aqueles cabelos? Acho que aquela tonalidade de tinta se chama
beterraba!
- Boa noite, Ju. Qual é mesmo seu nome?
- Ju!
Ju? Jurema, Judite, Julieta, jurupoca do raio que a parta!
- Filho, um pouquinho tarde, os pais da moça podem estar
preocupados. Eu dirijo pra você, vamos levá-la pra casa, que tal?
Riram. Riram de mim, ou pra mim, e rumaram para o quarto. Observei aquela tatuagem indecifrável no braço dela. Uma estrela? Um cometa?
- Gorda, não me acorda, tá? Ah, arruma aí uma escova de
dente pra Ju?
Aquela foi a noite mais longa da minha vida. Mais longa do
que a noite em que ele nasceu de parto normal. SofrI dezoito horas, mas valeu a
pena sofrer por amor. E lá estava ele, de porta trancada, com a esquisita da
tal de Ju.
Dormi quando o dia estava amanhecendo. Acordei tarde, fui à
cozinha. Encontrei minha frigideira preferida com o teflon arranhado e, pelos
restos mortais, pude notar que prepararam ovos mexidos. Fogão sujo, pia suja. Um
pesadelo, talvez? Continuei o tour pela casa. O banheiro todo molhado, uma
toalha jogada no chão.
Bati à porta do quarto. Uma, duas, cinco vezes. Resolvi
abrir. Ninguém no recinto. A cama por fazer, uma garrafa de refrigerante
destampada, um pacote de batatas fritas vazio, copos sobre a escrivaninha e
minha escova de cabelos ali, no meio da bagunça. Se tem algo que me tira do
sério é esse tipo de ousadia. Aqueles fios vermelhos
emaranhados nas cerdas da escova, aquilo fez meu sangue ferver.
Tomei a decisão. Assim que ele reapareceu, desta vez sem a
Ju Beterraba, declarei: - A partir de amanhã você vai trabalhar.
- Ah, Gorda, quero não...
No dia seguinte meu caçula foi trabalhar na loja do avô. A
Ju ainda apareceu umas duas, três vezes, sempre de madrugada. Um dia finalmente
evaporou, não antes de mudar a cor dos cabelos para um tom quase azul: azul
espanto!
Estava com a sensação de missão cumprida quando um ano mais
tarde tocou a campainha de minha casa a dita cuja. Ju, com os cabelos em tom
arroxeado, segurava no colo uma criança recém-nascida, cabelinhos loiros,
olhinhos muito azuis. Convidei-a para entrar, ofereci um café. Precisava ver a cara
de espanto da Ju Jabuticaba.
- Dona Gorda, eu...
Não aguentei: Meu nome não é Gorda e pra você eu sou
doutora, Doutora Diva.
Acho que peguei pesado demais, ela ficou tão pálida e o
bebezinho começou a chorar. Tentei consertar:
- Que bonitinho, de quem é a criança?
- É do seu filho.
- Que filho? Perguntei de quem é o bebê.
- O bebê é do seu filho, Dona... Doutora Gorda.
- O João Alberto mora na Europa.
- Não, o bebê é do Rick!
- Rick? José Henrique?
- Hã, hã!
Acordei neste hospital, acho que estava na UTI. Havia uns fios
que me ligavam à maquina barulhenta atrás de mim. A luz incomodava meus olhos. –
Gorda, fale comigo!
Era José Henrique, meu caçula.
- Filho, eu tive uma alucinação. Tinha uma mulher horrível
com os cabelos vermelhos que mudavam de cor.
Alguns dias depois, no quarto 678 do hospital, eu recebi a
visita da sagrada família: meu filho, a Ju de cabelos loiros e o bebê. Assim que tiver alta vou arrumar um emprego pra Ju. Pensando bem, acho que vou
arrumar uma viagem só de ida pra mim: há vagas em Marte!
Meninos nascem, crescem e frutificam. Mas tinha que ser
assim, José Henrique?