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Apresentação

Este blog nasceu no blog Janela das Loucas, onde assinava "Diva Latívia". Ali permaneci durante muito tempo, como autora principal das crônicas do blog. Redescobri que escrever é vital pra mim, guiada e editada por Abílio Manoel, cantor, compositor, cineasta e meu querido amigo. O Janela das Loucas não existe mais, Abílio foi embora pro Céu. Escrevo porque tenho esse dom divino, mas devo ao Abílio este blog, devo ao Abílio a saudade que me acompanha diariamente. Fiz e faço deste blog uma homenagem a aquele que se tornou meu irmão, de alma e coração. Aqui o tema é variado: cotidiano, relacionamentos e comportamento, em prosa e versos.







27 de set. de 2014

VERMELHO VIVO

Estavam os dois sentados à mesa do almoço. A comida era pouca. Ele de bermuda, sem camisa, o suor brotava na testa, tinha o olhar opaco e a barba mal feita. Ela, feições delicadas, olhos cor de jabuticaba, a juventude de um botão de flor. Havia um retrato pendurado na parede, na fotografia amarelada sorria uma mulher vestida de noiva e ao seu lado estava o mesmo homem, porém ali ele era jovem.
Sob a mesa, a cada garfada ruidosa, os pés sujos e calejados alcançavam as pernas alvas e trêmulas da filha, levantavam a barra da saia de cor azul e expunham as coxas firmes e bem delineadas. Ela cruzava as pernas, ele mandava que as descruzasse. Ela puxava a cadeira ligeiramente para trás, ele ordenava que voltasse. Obedecia e ele sorria com os dentes estragados. Foi assim até que ela cobriu o rosto com as mãos e soluçou. Depois, enxugou as lágrimas na ponta da toalha de mesa descorada, desceu as mãos até o ventre e multiplicou o choro.
O homem deu um soco na mesa, derrubou os copos. Amaldiçoou a geração futura. Levantou-se, puxou-a pelo braço, arrastou-a da sala até o quarto. Rendida, suplicou que a soltasse. Indiferente, ele mandou que despisse o uniforme escolar, ela se recusou. Deu-lhe um empurrão que a fez rodopiar, ela cedeu e o uniforme foi caindo pelo chão. Livrou-se da bermuda, bateu em sua barriga desnuda, que despontava saliente. Passou as unhas encardidas por seu corpo delgado, riscou suas costas. Virou-a de frente e surrou-a várias vezes. Ela se curvou, ele agarrou-a pelos cabelos longos, parecidos com os da mulher do retrato. Tirou-a pelo pescoço para dançar, uma dança sem música. Estavam vestidos apenas com a claridade que vinha da janela.
No baú de madeira escura buscou um trapo comido pelas traças. Cobriu a cabeça da filha com um véu de noiva, forçou-a a deitar-se na cama, tapou sua boca e calou-a. Gemeu sobre seu corpo franzino. Depois de muito tempo, soltou-a e adormeceu.
Já era o anoitecer quando de novo a caçou encolhida no sofá da sala e ali mesmo voltou a gemer. Ela tentou se esquivar, encolheu-se em posição fetal. Ele prendeu-lhe as pernas entre as suas. O sofá rangia e a silhueta dos dois na penumbra era ligeira. Quando terminaram, mandou-a dizer que o amava. Por fim, cobriu o rosto da noivinha com uma almofada. Ela gritou, se debateu, se contorceu, suas mãos tentaram livrar-se do objeto. Pouco a pouco, perdeu os movimentos até ficar inerte. Seus olhinhos castanhos estavam esbugalhados e ainda choravam, uma lágrima desceu pelos lábios entreabertos. O pai caminhou até à cozinha, serviu-se de uma bebida que escorreu por seu peito grisalho. Tirou o retrato da parede, lançou-o contra a cristaleira, choveram pedaços de vidro.
Era noite alta quando abriu a gaveta de um móvel e pegou um revólver. Sentou-se na ponta do sofá. A lua iluminava o olhar parado no mesmo lugar. Cacos de vidro cintilavam feito estrelas pelo chão. Chamou-a, ela não respondeu. Bateu em sua barriga com o cano do revólver: uma, duas, muitas vezes e ela não se mexeu.  Abraçou-a, olhou para a parede sem o retrato, apontou a arma para si e atirou. O véu ficou salpicado de vermelho vivo. 

12 de set. de 2014

ATO FALHO AMOROSO

Dizem que a pressa atrapalha a perfeição. Quando estou apressada atropelo os móveis, topo o dedinho, derrubo objetos. Um tanto distraída, com uma pitada de mau humor típico de quem vive atrasada. Coisa de mulher urbana, com jornada múltipla. Casa, família, cachorro, trabalho, cursos, amigos, imprevistos e a cabeça sempre nas nuvens. Assim despertei na manhã fria de quinta-feira. Na agenda estava escrito com letras maiúsculas, minha caligrafia de causar vergonha:  NÃO ESQUEÇA A REUNIÃO ÀS 8H00.
Doutor Armando, meu ex-chefe, é personagem de sonhos assustadores e recorrentes. Desde que saí daquele escritório, ele povoa meus pesadelos. Fiquei traumatizada, sinceramente. A cobrança de prazos, o receio de perder algum papelzinho, aquilo se incorporou aos meus neurônios restantes. Todo compromisso de trabalho com hora marcada me assombra. Tive um pesadelo, lá estava Doutor Armando a rasgar todas as cédulas de cem reais que tirava da minha carteira. 
A noite mal dormida, sonolenta. Logo cedo encontrei Divo, também atrasado, porém pensativo e enigmático. Conversar assim que desperto, fazer a tal da “discussão da relação”, pra mim é impossível. Ele comentou qualquer coisa a respeito do final de semana, compromissos que modificariam meus planos de sossego. Contrariada, escutei e escutei calada. Voltei para a cozinha, bebi café forte e sem açúcar, fui tomar meu banho, depois dei comida pro meu cachorrinho. Olhei ao redor, Divo estava no terraço. Fiz um esforço apaziguador, me despedi e fui para o trabalho.Dez da manhã, no escritório, tocou meu celular, era da portaria do edifício onde moro: -  Dona Diva, o Sr. Divo está na sacada gritando, pedindo socorro.
O sangue esfriou tanto que imaginei hemácias on the rocks. Pensei na torradeira, que de vez em quando esqueço ligada. Um incêndio, assalto, desabamento?
Fui para casa e passei pela portaria sob o olhar do porteiro. Olhei para o alto, tentei visualizar o apartamento. O elevador subiu e subiu lentamente, Abri a porta de casa, o cãozinho latiu mais estridente do que o normal. Ao ouvir a minha chegada, a vizinha do apartamento ao lado apareceu no corredor. Disse apenas uma palavra: - Coitado!
Lá estava Divo, no canto do terraço, encolhido de tanto frio. A porta da sacada trancada pelo lado de dentro. Quando me despedi, tranquei a porta, um ato falho. Divo, possivelmente com a pressão arterial alterada, estava meio roxo. Abri a porta e ele somente lançou um olhar pontiagudo para mim.
Pedi desculpa, ele não respondeu. Busquei um copo d´água, que ele bebeu em um gole só. Perguntei se precisava de alguma coisa: café, remédio, médico, hospital. – Quero que você suma da minha frente!
E foi assim que eu sumi. Escrevo este texto ainda no escritório. Voltar para casa parece uma péssima ideia neste momento. Será que Freud conseguiria explicar essa situação? Bem que no meu horóscopo estava escrito que eu prenderia o amor nesta semana. Se fosse mais específico, o tal do horóscopo deveria ter avisado que eu o prenderia no terraço do apartamento.

4 de set. de 2014

TAL MÃE, TAL FILHA

Sabe como é mulher, não sabe? Mulher é naturalmente vaidosa. Pode ser branca, negra, amarela, azul. Pode ser terráquea, ou marciana.
Minha vaidade foi colocada à prova recentemente. Estava no estacionamento do shopping quando encontrei ninguém menos que ele, o Zé Raylton. Pra quem não sabe, ou não consegue lembrar do dito cujo, Zé Raylton me abandonou em uma tarde fria e levou consigo o meu rádio. Sim, o rádio mesmo, que eu havia comprado em dez prestações. Levou e declarou: - o rádio é meu!
Claro que eu o mandei pra aquele lugar impublicável. Deve ter ido, porque levou o rádio e desapareceu.  Anos e anos de sumiço. Até que nos encontramos naquele estacionamento. 
Devo ter esbugalhado os olhos, ele estava enorme de tão gordo. O topetinho que ele usava de lado e fixava com camadas generosas de gel para cabelos, simplesmente caiu. No lugar havia uma careca lustrosa. Pensei: - será que ele usava tic-tac na franja e eu nunca reparei?
Percebi que ele encolheu a barriga pronunciada, prendeu a respiração. Lembrei que ele sofria de dor de barriga incurável e progressiva. Fez cara de quem precisava ir ao banheiro. Não deixei por menos:- Oi, Zé, há quanto tempo!
Ele se agarrou firme às sacolas de compras e respondeu algo rapidamente, não escutei muito bem. Fui atrás. – Não sabe quem eu sou?
Parou de andar, me olhou de cima abaixo. – Dona Bárbara Germânia! Há quanto tempo, como vai a senhora? E sua filha, a Diva, como ela está?
Bárbara Germânia era minha mãe. Comecei a rir. – Tá falando sério, Zé?
- A sua filha se casou?
Não aguentei. Ele realmente estava doido, ou cego, algo assim. Resolvi entrar na onda dele. – Casou e teve dois filhos. Mudou para a Indonésia!
- Que coisa boa. Menino ou menina?
- Menina e menino.
- Parabéns, Dona Bárbara. Foi um prazer encontrar a senhora, mande um abraço pra Diva.
Entrei no meu carro me sentindo literalmente zoada. Será que o Zé Raylton resolveu me sacanear? Será que ele ficou maluco? Ou... Ou será que estou assim tão parecida com minha finada mãe?
Minha autoestima despencou no chão, coisa que nem mesmo um litro de botóx conseguiria consertar.
Dois dias depois recebi um convite de amizade no Facebook. Quem era? Sim, ele, o Zé. Aceitei. Primeira conversa: - Diva, sobre aquele nosso encontro no shopping, preciso falar com você.
- Zé, minha mãe me disse que encontrou um cara parecido com você no shopping. Só não era você porque era careca e gordo.
Foi a amizade mais rápida que fiz naquele tal de Facebook. Durou 5 minutos. Fui deletada e bloqueada,
Coisa boa ter falado com o Zé.

Este texto se parece muito com tudo aquilo o que escrevíamos no antigo blog, Janela das Loucas. Escrevi pensando em você, meu saudoso amigo Abílio Manoel. Uma trapalhada de Diva Latívia, para adoçar os nossos dias. Saudade!