Quando tudo isso começou, em março, lembrei que uma cartomante havia me dito no final de 2019 que meus planos de viagem precisariam ser adiados em 2020. Sem maiores explicações e seca assim: - Diva, não viaje nas férias, evite ir a países que ainda não conhece. Isso pareceu fácil, porque conheço meia dúzia de países e nada mais. Porém, eu pretendia ir à Itália, que ainda não conheço.
Despachei a bagagem no aeroporto de Cumbica, em São Paulo, e
pensei positivo. Quando o avião decolou, voltei a lembrar o que a mulher havia
me dito e tentei ser discreta ao fazer o sinal da cruz. A cada sacolejo da
aeronave eu dava um golinho a mais na taça de Malbec. Pelo sim, pelo não, rumei
para um país que muito bem conheço e admiro: a Argentina, lugar encantador que
é meu velho conhecido. Não sou supersticiosa, mas sei que as cartas não mentem
jamais!
O passeio foi tranquilo, celebrei meu aniversário totalmente
alheia ao noticiário e aproveitei cada segundo como se não houvesse amanhã.
Embarquei de volta, dessa vez menos
preocupada e poucas vezes lembrei do alerta da cartomante. Quem sabe, ela
tivesse cometido algum engano? Será que eu deveria ter ido à Toscana, que
sempre quis conhecer? Boba, certamente, deixei de viajar para onde mais
desejava e em vão!
Quando desembarquei no Brasil, deparei-me com os
funcionários do aeroporto trajando máscaras, todos eles. E o pessoal da
imigração, aquela gente toda que cuida da fiscalização de bagagens, a turma do
Duty Free. Ecoava a todo momento no sistema de som, em vários idiomas, que
deveríamos manter distância um do outro, lavar as mãos, que havia por aqui
chegado o tal do vírus.
Cheguei em casa, tomei um banho demorado, dispensei minha
diarista, cancelei o horário no salão de beleza, desmarquei os compromissos
profissionais e presenciais. Comprei a preço de ouro dois litros de álcool em
gel, estava em falta esse produto. Também paguei muito caro por uma caixa de
máscaras descartáveis. Pedi o supermercado na internet. Quando as compras
chegaram tratei-as como se fossem contaminadas, higienizei cada milímetro de
cada embalagem. Minhas mãos ressecadas em poucos dias. Minhas costas doloridas
de tanto fazer limpeza em casa. E eu ligada dia e noite no noticiário.
Não sei vocês, mas emagreci muitos quilos nos primeiros
meses. Depois, bebi muitas garrafas de vinho e latinhas de cerveja, comi muita
porcaria. Engordei o que emagreci e ganhei mais uns quilos extras. Passei a
assistir às séries, maratonei noites afora. Sem visitar a família, sem ver os
amigos. Meu companheiro, um cachorrinho, meu velho e paciente amigo. Todos os
dias passo um paninho com álcool no livro que eu estava lendo em março.
Continua sobre o meu criado-mudo. Até hoje, final de outubro, não consegui
voltar a ler atentamente, minha mente voa para lugares distantes, mais
distantes do que nos levam as histórias contadas na literatura.
Hoje, depois de tanto tempo, arrisco esta mensagem de bordo.
Eu, Diva Latívia, não contraí o vírus. Estou viva, acho que sim. Ilhada,
observo o movimento na rua pela sacada do apartamento. Minhas viagens
suspensas, meus planos quase todos suspensos, meu trabalho perdido, minha
família distante, meus amigos no WhatsApp. Mas, existe algo que nem mesmo a
trágica pandemia tirou de mim: este blog e a delícia das letrinhas.
Tenho um sonho recorrente e nele saio à rua sem máscara e me
sinto nua. Entro em pânico quando sinto meu rosto despido de proteção e pudor.
Acordo aflita e, quando percebo que foi apenas um sonho, tento imaginar quando
o pesadelo real vai terminar.
Tantas vidas perdidas, tanta gente com a saúde agredida,
tantas famílias enlutadas, tantos empregos perdidos. Poderia ter sido a queda
de um enorme meteoro sobre nosso planeta, ou um tsunami que varresse toda a
costa atlântica. Mas, a nossa desgraça é microscópica.
Espero que um dia eu volte a fazer as malas e rumar para um
país charmoso, no outro lado do mundo. Sem precisar de máscara, nem sentir medo
do invisível. Nesse dia, espero assim, terei voltado a ler meus livros, a dançar
sem motivo e a escrever as histórias.
Sobre a cartomante, se eu tivesse ido à Europa em março,
quem sabe eu tivesse voltado doente? Como saber? A ela deixo um crédito de
confiança e respeito. Boa a dica que recebi!
Fica aqui a minha homenagem a cada um que sofre, eu
compreendo a dimensão de sua dor. A cada um que adoeceu e cada um que morreu. De
algum modo estamos juntos, ainda que sem beijo, sem abraço e sem podermos
revelar as nossas faces.