Não entendo o motivo disso, mas minhas tias, com exceção de Tia Ingrid, se tornaram absurdamente azedas, insuportáveis. Se existe uma tia que jamais foi com a minha cara é a tia Violeta. Ela cismava com minha postura, dizia que eu era corcunda. Implicava com meu peso, me chamava de gordinha. A todo instante batia nas minhas costas e dizia: - endireita isso, menina! - De vez em quando batia na minha barriga: -encolha isso, menina! - Eu não podia passar perto dela que lá vinha um tapinha, às vezes um tapão. Peguei raiva dessa tia durante a infância e adolescência, portanto não é implicância, é trauma de verdade.
Domingo é aquele dia feito sob medida para dormir muito. Minha caminha aconchegante, quentinha, eu totalmente despreocupada, relaxada. Que coisa boa que é a paz, o sossego! Ainda que meus finais de semana sejam todos urbanos, afinal o sítio foi vendido e já era, eu faço do meu apartamento o meu refúgio, com direito ao canto dos passarinhos que vem daquelas árvores perto da banca de jornal.
Creio, escutei um som e não eram os passarinhos. Talvez, proveniente de algum apartamento vizinho. Um alarme, talvez o telefone. Que gente inconveniente, domingo a essa hora? Que horas seriam? Ah, isso não importava. Virei-me, arrumei o travesseiro de um jeito tão bom que o sono me abraçou novamente.
Despertei. Teria sido o interfone, ou a campainha? Meu cãozinho, Bono, latiu estridente. Sem acreditar no que ocorria, zonza, caminhei sem rumo. Bati aquele ossinho do pé na quina da porta do quarto. Esmurrei a porta de tanta raiva: - porta filha da ....!!! Divo falou qualquer coisa: - Oi? Eu?
Antes que eu chegasse à cozinha, o interfone disparou duas vezes. Atendi e escutei a voz de Lindomar, o porteiro. – Dona Diva, tem uma muié aqui embaixo dizendo que é sua tia, ela pode subir?
Bono latia, o pé latejava, pensei em dizer ao porteiro que inventasse qualquer desculpa, dissesse que não tinha ninguém em casa. Eu estava meio dormindo, meio morrendo de dor no pé. Bono decidiu por mim, ao abanar o rabinho todo satisfeito. - Qual o nome dela, Lindomar?
- Pera aí que vou preguntá.
- É Violeta.
Tudo o que eu não queria naquele domingo começava a acontecer. Olhei pro relógio da cozinha, 08h15 da matina. O sono era tanto que, se eu pudesse, dormiria em pé.
-Manda subir!
Nem tive tempo de escovar os dentes, a titia apertou a campainha diversas vezes seguidas. Bono voltou a latir. Saí do banheiro mancando, de camisola, despenteada. Fiz o esforço máximo: – Bom dia, titia, seja bem-vinda!
Sequer respondeu, atirou-se sobre o sofá, com seu guarda-chuva. – Ai, estou muito cansada. O que você tem pra beber?
Busquei água pra titia. Admirada, repreendeu-me. – Menina, a esta hora da manhã você deveria estar vestida. Eu prefiro café, onde está o café?
Tinha começado o inferno do meu domingo. Um domingo ensolarado. Pra quê aquele guarda-chuva?
- Titia, vai chover?
- Está louca, garota? Não vê que está fazendo sol?
- Mas, esse guarda-chuva...
- O que tem? Eu uso o guarda-chuva pra minha proteção!
Achei melhor não fazer mais perguntas. Proteção contra raios solares? Contra ladrões? Talvez, já caduca, ela estivesse vendo inimigos imaginários!
Divo acordou com todo aquele barulho.Titia, ao vê-lo na sala, não se conteve. – Nossa, você está horrível, meu filho. Precisa emagrecer, ou vai morrer do coração.
Divo olhou-me atravessado. Não tive dúvidas, peguei aquele comprimidinho tranquilizante natural que a médica homeopata havia prescrito pra mim. Tomei logo dois de uma vez. Homeopatia, segundo eu imaginava, era algo leve, inofensivo, quase docinho pra criança. Sentei-me à mesa e observei titia mastigar avidamente pão integral com requeijão. O som que produziu ao beber café com leite fez Bono rosnar.
- Diva, menina, quem vai buscar minha mala na portaria do prédio?
-Sua mala?
-Claro, como acha que vou passar uma temporada na sua casa sem trazer minhas coisas? Mande seu marido ir buscar!
Mal terminou de falar, tirou a dentadura, sem a menor cerimônia e, com dificuldade, caminhou até a cozinha, escolheu um dos meus copos favoritos e lá colocou a dita cuja.
Homeopatia é coisa natural. Feito maracujá, erva doce, essas coisas. Tomei mais um comprimidinho de calmante e não lembro muito bem se falei com Divo, ou não. O que sei é que consegui chegar até minha cama.
Sonhei que eu voava, que a montanha-russa tinha asas e que as nuvens eram esverdeadas. Acordei às 17h23, assim marcava o relógio. Meu quarto silencioso, tudo muito confortável. Onde estaria Divo? Cheguei à sala, titia fazia crochê e assistia Silvio Santos. Divo e Bono deixaram um bilhete assim escrito: fomos almoçar na casa da mamãe.
- Diva, sua irresponsável! Uma mulher tem deveres, quer perder seu marido pra outra? Como que você dorme até essa hora? Por isso que você está assim, gorda e corcunda! Seu marido ficou sem almoço e eu estou faminta! O que vamos ter para o jantar?
Fugi de volta pro quarto e telefonei pra prima Rosa. – Rosinha, pelo amor de Deus, me ajude!
Titia, para meu alívio, foi exportada pra casa da Rosinha, ela e sua mala. Passei dois dias meio avoada, calma demais. Homeopatia, é? Bad trip! Aquilo era uma bomba-calmante! Comigo agora é assim: na portaria do prédio deixei ordem de jamais, nem mesmo em caso de incêndio, o interfone tocar antes do meio-dia.
Quinta-feira, dez horas da manhã, chegou o televisor novo, comprado por Divo no sábado. Lindomar, o porteiro, não recebeu a compra e nem me chamou, afinal não era meio-dia. Sacana!
Pensei em tomar outro calmante homeopático, mas concluí que aquilo dava barato, com nuvens esverdeadas e tudo o mais. Melhor enfrentar a realidade a seco. E tudo isso eu devo à tia Violeta, que de casa em casa, de parente em parente, causa confusões familiares incríveis.
Hoje cedo telefonou a prima Rosa. Queria, de todo jeito, me convencer que agora era minha vez de ficar com a tia Violeta. Segundo propôs: uma semana cada uma, um revezamento. Mais do que depressa eu inventei uma desculpa: - Vou operar, não posso!
– Operar o quê?
– É... Hã... Não seja indiscreta, Rosinha!
– Ah, já sei, vai colocar silicone na bunda, né?
O desaforo de Rosinha me fez entender que melhor do que calmante homeopático são exercícios físicos regulares. Escrever, meu esporte preferido, é um bom tranquilizante e não tem efeitos colaterais, mas tem nuvens esverdeadas e me faz voar pra qualquer lugar. Santo calmante!
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