Em plena pandemia há dias que séries e filmes, livros e música, nada parece ocupar-me mental e emocionalmente o bastante. Essa insatisfação compenso com café e momentos de distração, sentada na varanda do meu apartamento a observar o movimento da cidade que fica dezoito andares abaixo dos meus pés e, às vezes, assisto a vida passar no enorme cenário a alguns metros, logo à minha frente. Preparo um café e reparo no edifício em frente ao meu, duas dúzias de andares, muitos apartamentos, muitas varandas e janelas.
Paro o olhar na mulher de cabelos grisalhos e desalinhados, acima do peso, usa camisola curta e desnudas pernas brancas. Rega as plantas, parece conversar com as flores. Aparece um gato, desfila e desaparece novamente. Qual será a sua idade? Será sozinha? Terá amigos? Filhos?
Mudo meu olhar para outro apartamento, alguns andares acima.
Um homem a praticar exercícios físicos e demonstra cansaço. Não mais que dois
minutos e seu olhar bate no meu, sinto-me flagrada. Ele entra no apartamento e,
ruidosamente, fecha a cortina. Desvio rapidamente o olhar, ajeito-me na cadeira,
virada de costas.
O café parece ter esfriado, busco outro café e tento ser
mais discreta. O casal idoso do apartamento quase em frente ao meu. Parece conversar
harmoniosamente. Tem um cachorro. Não, não, não! Agora pude reparar melhor,
parece ter dois cachorros. E aquela
mobília da sala? Pela porta de acesso à varanda vejo a estampa florida do sofá,
o tapete estilo persa e o lustre com pingentes de cristal. Aquele quadro será
um navio, ou um barco de pesca? Como alguém consegue atravessar uma quarentena
morando em um lugar visualmente poluído?
Escuto risadas, vêm do apartamento ao lado daquele. O homem
parece ter uns trinta e cinco, no máximo quarenta anos. De barba, cabelos
ondulados, pele bronzeada. Onde terá tomado sol? Terá ido à praia? Sem camisa, veste
uma bermuda, as pernas musculosas sobre uma cadeira em frente à sua. Nada mal,
penso. Surge outro rapaz, também bronzeado e bem torneado. Será um casal? Serão
amigos? Irmãos? Somem juntos para dentro do apartamento.
Eis que reparo na moça do andar de cima daquele, limpando a
janela e olhando na minha direção. Olha-me como se minhas paredes fossem de
vidro e não se acanha. Sustenta o olhar na minha
direção, de modo desafiador. Finalmente, ela vai embora. Levanto-me, entro em
casa e tento imaginar quem será aquela vizinha.
A falta de
privacidade neste condomínio precisa ser reportada aos demais moradores, farei
isso na próxima reunião de condôminos. Gente depravada, só pode ser. Resolvo
preparar outro café e volto para a varanda.
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