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Apresentação

Este blog nasceu no blog Janela das Loucas, onde assinava "Diva Latívia". Ali permaneci durante muito tempo, como autora principal das crônicas do blog. Redescobri que escrever é vital pra mim, guiada e editada por Abílio Manoel, cantor, compositor, cineasta e meu querido amigo. O Janela das Loucas não existe mais, Abílio foi embora pro Céu. Escrevo porque tenho esse dom divino, mas devo ao Abílio este blog, devo ao Abílio a saudade que me acompanha diariamente. Fiz e faço deste blog uma homenagem a aquele que se tornou meu irmão, de alma e coração. Aqui o tema é variado: cotidiano, relacionamentos e comportamento, em prosa e versos.







31 de out. de 2012

PAPO DE FINADOS


Finados, de coisa finda, finita, findada. Já foi, já era! Findou!
Há quatro décadas, usando trancinhas e lacinho nos cabelos, eu acompanhava uma comitiva “sui generis” ao cemitério no Dia de Finados. Minha avó, acompanhada de sua irmã, uma  tia e uma prima. Na floricultura em frente ao cemitério a vovó comprava palmas vermelhas, funéreas. E lá íamos nós, pelas alamedas da terra dos pés juntos, o sol escaldante a nos maltratar. Ano após ano, o ritual se repetia. Ao chegarmos ao túmulo de nossos falecidos parentes, todas faziam expressão de tristeza profunda. Silêncio! A vovó, abraçada às flores, mexia os lábios em um quase filme mudo. Estava rezando em voz baixa, tão baixa que eu tentava inutilmente ler seus lábios. A seguir, começava a enfeitar o túmulo, de terra, com as flores funéreas. Formava caprichosamente uma cruz. Mais algumas preces quase mudas, um sinal da cruz e íamos embora, a observar as esculturas das sepulturas e as inscrições em suas lápides. Programa fúnebre, pouco indicado para uma criança de sete, oito anos de idade.
O tempo passou e hoje eu visito o jazigo de minha mãe, no Cemitério do Morumbi, em São Paulo. Sem túmulos, apenas o gramado e uma placa com o nome da mamãe. Pra ela eu costumo levar margaridinhas e esqueço o tempo, a hora. Minhas preces, provavelmente, também se parecem com um filme mudo. Algo particular, somente nós três sabemos o que rezei:  Deus, Mami e eu. E é assim que compreendo o que ia fazer minha avó naquele cemitério, o que ela rezava, por que insistia em repetir o mesmo ritual anualmente. Lá no cemitério estava enterrada minha bisavó Almerinda, a mãe da vovó.  Saudade! Mães, avós, bisavós. Todas deveriam ser imortais!
Às vezes eu evito ir ao cemitério. As flores são entregues semanalmente por uma florista, um jeito que encontrei de homenagear minha falecida mãe. De tudo isso restou o pavor que tenho de cemitério, um trauma de infância. Já decidi que, quando eu partir desta pra seguinte, quero que meu corpo seja cremado. Nada de enterro, nada de cemitério.
E esse papo funerário, inspirado no Dia de Finados, termina com um dizer de ninguém menos que minha saudosa avó: “vivam cada dia como se fosse o último”. É isso aí, Vó, você sabia das coisas!




23 de out. de 2012

O FIM DO RELACIONAMENTO



E quem semeia pé de vento colhe furacão.
Os relacionamentos amorosos deveriam ser tão longos, previsíveis e estáveis quanto foi o casamento dos meus avós. Porém, a vida nem sempre é assim. Altos e baixos. Baixos e baixos, mais baixos... Enfim... É uma pirambeira!
Eu já declarei isso anteriormente, mas nada custa repetir: minha certidão de casamento é tão extensa que parece uma “capivara policial”. Casei, separei, divorciei, casei. Enfim, o único estado civil que eu ainda não provei é o de “viúva”.
Qual será o primeiro sinal de alerta, o primeiro indício de que um relacionamento amoroso está indo pro beleléu? A falta de beijos na boca? A falta de tesão de ambas as partes? As visitas fugidias dele aos sites pornôs enquanto ela trabalha? As brigas reincidentes por conta de bobagens? A falta de planos  em comum para o futuro?  Aquelas férias sonhadas que precisaram ser canceladas porque ele não quer viajar? A sacanagem do orçamento financeiro mensal, quando um arca com  mais despesas do lar que o outro?
Quantas divergências podem atormentar a vida de um casal à beira do abismo? A prévia do adeus é longa, demorada, dói aguda feito um dente cariado. O desamor dói!  Desamar. Desfazer. Desatar. Separar!
O primeiro momento é de dor, torpor. O segundo momento é de solidão, desordem. Nem quero pensar nisso, prefiro não lembrar.Quando aquele jeito dele se sentar esparramado no sofá deixa de ser bonitinho e passa a ser invasão de território, isso é o começo do fim. Quando a conchinha acolhedora do momento de dormir passa a ser a causa da insônia, isso é o começo do fim. Quando aquele jeito dele se vestir se torna deselegante. Quando o sorriso dele tem um defeito. Quando o perfume dele é enjoativo. E tudo o mais é um pulo no escuro: ou vai, ou racha!
Vida e seu ciclo. Gente que vai, gente que vem. Relacionamentos longos, duradouros, equilibrados, coisa rara! Voltar ao mercado dos solteiros, ser experimento, cobaia, momento? Começo a vislumbrar a positividade da solidão, do celibato, da reciclada castidade. Desfaz-se um laço, sabiamente não foi nó!

Texto baseado no relato de uma leitora, recém-separada. Há de surgir um novo sorriso, uma nova energia, um novo amor!






14 de out. de 2012

AOS MEUS PÉS


Ele olhou pra mim, eu olhei pra ele. Tentei disfarçar, mas ele mexeu comigo, abalou minha estrutura. Andei alguns passos, mas a todo instante eu, discretamente, lançava um olhar furtivo na sua direção. Ele era exatamente o que eu sonhava, do jeito que eu sempre quis. 
Sei que eu sorri! Ajeitei minha franja, caída sobre minha testa. Suspirei, depois tentei me recompor.  Simplesmente perfeito, ele era perfeito!
Comecei a sonhar acordada, delírios breves. Uma cena quase hollywoodiana,  sonhei usar um vestido esvoaçante, dançávamos juntos, ele reluzia discretamente com seu brilho natural e eu me sentia descalça, a pisar em nuvens de algodão.  Era ele! O quanto eu o havia procurado? Finalmente nos encontramos! Não resisti e tomei uma decisão: ele seria meu! Não importava o quanto isso custaria, quantos sacrifícios eu teria que fazer para tê-lo. Era ele, tinha que ser ele e ponto final. Iríamos pra night, pra balada, viajaríamos para Nova Iorque, talvez Paris. Glamour, estilo, ele era tudo o que faltava para compor a minha produção.
Eu o tive em minhas mãos, depois aos meus pés. Meu objeto de desejo! Quanto prazer, quanta emoção! Mandei embrulhar o scarpin preto de cetim. Paguei no cartão de crédito em três vezes. Ainda não o calcei, mas de vez em quando eu o tiro da caixa e o admiro: mais um  par de sapatos pra minha coleção, pura paixão!

8 de out. de 2012

12 DE OUTUBRO


Semana mais curta, hoje é segunda, mas na prática hoje é terça-feira. Duvida? Faça as contas: sexta-feira será feriado nacional. Dia de Nossa Senhora Aparecida, santinha bonitinha, padroeira do Brasil. Mas, cá entre nós, bom mesmo é que sexta-feira, além de ser feriado, é o Dia das Crianças.
Antigamente, no Dia das Crianças, as freiras do colégio onde eu cursava o antigo primário, promoviam uma festinha com a presença dos pais das alunas. Que horror, lembro que havia um toque militar naquela formação organizada, as crianças todas enfileiradas. Ai daquela que sentisse vontade de fazer xixi, espirrasse, ou fizesse tchauzinho pra mãe, pra avó. Linha dura, criança tinha que obedecer aos adultos e ponto final. Um tormento, no pátio da escola se formava um imenso círculo, uma roda de alunas que  ao som de “criança feliz” giravam cabisbaixas, mãos para trás, sem noção, sem explicação. Ordens são ordens. Assim foi criada a minha geração, praticamente batendo continência. Idos anos 60 e 70!   “Criança feliz, feliz a cantar. Alegre a embalar seu sonho infantil”.  Se havia alegria, estava longe de mim tal sensação.
Que Nossa Senhora Aparecida me perdoe, sei que havia exceções, mas aquela época não me traz boas recordações, lembro da ditadura militar, da ditadura familiar e da ditadura das freirinhas do colégio, momentos nada felizes, sonhos infantis controlados, enfileirados, podados. Ser criança não era tão fácil quanto é agora. Queria ser criança do século 21!
A alegria dessa data ficava por conta da minha família. Lembro que, certa vez, recebi do meu pai um presente especial, um kit de mágica. Ah, o papai, ele era brincalhão, quando faltava energia elétrica usava a pouca iluminação, luz de velas, para ensinar a fazer com as mãos sombras na parede, em formato de pássaro, macaco, coelho. Ríamos todos, isso se eternizou em meu coração.
Antigamente um  presente do Dia das Crianças era apenas uma lembrancinha, algo simples, tal como um baralho do jogo do mico, um saquinho com pinos mágicos, um livro, um saquinho de balas. O consumismo ainda não havia acometido nossas vidas. Minha geração não ia às lojas de brinquedos e esperneava histericamente, feito alguns rebentos atuais: - " Compra! Compra! Eu quero! Me dá! Buáááááááá!". Isso é coisa da geração seguinte à minha. Ah, os filhos, esses foram criados sem filas, sem linha dura. Outro problema, os extremos jamais funcionaram a contento. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Regras demais, regras de menos, nada bom isso. Sou da geração salsicha do hot dog. Minha geração obedecia aos pais e décadas mais tarde obedece aos filhos. Obediente, portanto, essa minha geração.
Falei do meu pai? Hoje completa treze anos que ele partiu rumo ao infinito. Espero que tenha se transformado em uma estrela, que brilhe com jeito divertido no firmamento, que faça as estrelas ao seu redor rir sem parar. Foi bom ser criança e ter momentos breves, alguns leves, acompanhada desse alguém, que às vezes fez o bem. Esperar perfeição de nossos pais, isso é  exigir demais.
Minha infância transcorreu normalmente, do jeito que a infância de uma criança deveria transcorrer. Obediente, mas nem tanto, ainda tenho marcas, cicatrizes de tombos de árvores, quedas de bicicleta, até mesmo do estouro de bombinhas eu trago cicatrizes. Fui moleca! Naquela época a gente brincava na rua, esqueçam o que acontece agora com a falta de espaço e crianças brincando em brinquedotecas de condomínios sofisticados que, de fato, são cortiços verticais.  A gente era feliz, apesar das ordens, apesar das freiras, apesar dos pais. Ser criança era simples demais!
Quer uma sugestão? Seja criança, não cresça. Ser adulto não tem graça, a gente para de brincar, ganha rugas de preocupação, se chateia e chateia quem está ao nosso redor. É muito chato ser adulto!  Hoje sinto saudade da infância, sinto saudade da inocência, da felicidade desinteressada. Hoje, de um modo indulgente, sinto saudade do meu pai!

3 de out. de 2012

A HOSPEDAGEM DE TIA DEUZINETE


Há quantos anos eu não via a Tia Deuzinete? Tentei calcular, puxei a memória até lembrar aquele dia. As férias escolares a gente passava no sítio. O pomar com jabuticabeiras, abacateiros e limoeiros. Goiaba com bicho, fiapos de manga presos nos dentes, mastigar cana-de-açúcar até virar bagaço. A vida corria lenta, morna, azulzinha. Doce época que foi a infância, a adolescência. Tempo bom demais! Titia costumava nos acompanhar nessas empreitadas.
Tantos anos mais tarde, o convite para Titia visitar São Paulo partiu da Tia Marieta, prima-irmã de Tia Deuzinete. Quem a convidou deveria hospedá-la, mas a missão foi a mim entregue. A casa de Tia Marieta pareceu muito distante do posto de saúde onde Tia Deuzinete deveria fazer seu tratamento para úlcera varicosa, coisa que deu em suas pernas.
E lá fui eu na rodoviária buscar Titia, munida de muita boa vontade, valores morais elevados, compaixão e senso familiar digno da perfeição retratada naquela propaganda de margarina. Juro, em minha cabeça até tocava insistentemente aquela música que fala do amor ao próximo:  é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã!
Mal aquele ônibus proveniente da Serra do Piriri atrelou na rodoviária, eu me aproximei da plataforma imbuída do mais alto espírito de amor, bondade, carinho sem fim por minha tia idosa, que eu não via há... Há... Trinta e quatro anos!
Tia Deuzinete, em 1978, tinha mais ou menos uns cinquenta anos de idade. Era gordinha, tingia os cabelos de cor de burro quando foge, não depilava as pernas e não suportava tomar sol, nem mesmo em nossas viagens à praia.  Um tanto rabugenta, em sua árida viuvez, não teve filhos que a ocupassem. Titia era um tanto desocupada, pra dizer a verdade. Vivia da pensão pós-morte do Tio Nicolau e não fazia muita coisa da vida, ou melhor, fazia sim: cuidava da vida alheia. Sabia de tudo o que acontecia na sua rua, na rua de cima, na rua de baixo. Era a fiscal da vida dos outros. Em suma, Tia Deuzinete era fofoqueira. Passava uma temporada na casa de um parente, depois rumava pra casa de outro parente, outro e outro. Itinerante, por assim dizer. Falava mal de todos, falava de uns para os outros. Era um inferno!
Ah, lembrei uma história! Passamos a Semana Santa e Páscoa no sítio. Naquela época, minha avó preparava deliciosas compotas e geleias com as frutas colhidas de nosso pomar. Os quitutes eram deliciosos e preparados no fogão à lenha, em pesadas panelas de ferro. Titia, muito religiosa, começava seu jejum na quarta-feira de cinzas, alimentava-se apenas com uma sopinha rala, torradinhas e chá. Na quaresma Titia emagrecia que era uma beleza, mas estava longe de ser formosa, tinha o  semblante sempre fechado, os cabelos presos em um coque baixo e amarrados com grampos de cor preta.
A Páscoa significava muitas guloseimas, especialmente na sexta-feira, quando bebíamos sangria,  preparada para acompanhar a bacalhoada no forno e o arroz branquinho. De sobremesa doce de leite, figos em calda, goiabada cascão.  Pois Tia Deuzinete, assim que despertou na sexta-feira da paixão, vestiu-se de preto da cabeça aos pés.  Titia parecia um urubu! Com o terço nas mãos e a expressão ainda mais sisuda do que o habitual, decretou que naquele dia o jejum da família seria total: somente água, nada mais, em homenagem a Nosso Senhor Jesus Cristo.
Tibúrcia, nossa cozinheira, foi proibida de preparar ao menos o café da manhã. De nada adiantou um e outro resmungar. Era dia santificado, dia de chorar pelos nossos pecados. O jeito era fugir daquele luto, dar uma escapadinha e contrabandear maria-mole, pão doce e balinha puxa-puxa para o meu quarto. Sob o meu travesseiro Titia flagrou o resultado do meu furto à despensa. Uma trilha de formiguinhas me dedurou. Apanhei: - Diva, estique sua mão. Fechei os olhos e, enquanto meus dedos ardiam com a chinelada, escutei o “splac” daquele chinelo de quarto, de tecido rosa, estalar em minha mão. Doeu, muito!
Por sorte, o dia seguinte era aleluia! A fome era tanta que, se eu pudesse, comeria um bolo sozinha. Deve vir desse episódio o meu atual aumento de peso. Preciso anotar e contar à endocrinologista: tenho trauma de Tia Deuzinete!
E lá estava a Titia, parada no topo da escada do ônibus. – Não quero ajuda, sou velha, mas não estou imprestável!
Desceu a escada com muito sacrifício, um tanto aflitiva a cena. Olhou-me com arzinho de nojo, mediu-me da cabeça aos pés. – Quem é você?
- Titia, querida, como a senhora está? Sou eu, sua sobrinha, Diva!
- Diva? Engordou! Tá horrorosa!
Ela não precisava dizer mais nada. Eu levei Titia pra minha casa, tentei acomodá-la da melhor forma possível. Foram quinze dias de martírio, uma experiência que pretendo não repetir. Ela conseguiu me convencer que minha cama, meu quarto, eram mais apropriados para o seu conforto  e restabelecimento de sua saúde. E eu fui dormir no quarto de hóspedes.  Ela não suportava: meu cachorro, o tempero da minha comida, meus amigos, meu apartamento. Enfim, ela não me suportava e eu já começava a retribuir a esse desafeto na mesma moeda. Descobri que eu odiava Tia Deuzinete!
Para não ter que enfrentar a chatice de Titia eu comecei a fazer hora extra no trabalho. Quando chegava em casa, ela estava dormindo e roncando em minha saudosa caminha. Tudo correu relativamente mal, porém de modo contornável, até o dia em que o vaso sanitário da suíte entupiu. Facilmente descobri o que havia caído na privada. Essa mania de Titia deixar a dentadura sobre a pia do banheiro terminou mal, muito mal. Foi necessário chamar o encanador. Diagnóstico: o vaso sanitário precisava ser removido, para que a dentadura fosse capturada e o encanamento desbloqueado. Enquanto isso, até que enfim, Titia permaneceu de boca fechada, para que sua banguela não aparecesse. Após esse episódio, Tia Deuzinete decidiu ir embora de minha casa. Um lar nada cristão, em sua opinião. Ali, ninguém ia à missa, ninguém rezava o terço. Pecadora que sou, não consegui convencê-la que a dentadura caiu no vaso por um acidente. Chegou a insinuar que meu cachorro a pegou e atirou dentro da privada. Impossível, Bono é baixinho e não alcança a pia do banheiro.
Prima Rosa veio buscar Tia Deuzinete. Acompanhei as duas até o portão, ajudei a acomodar as malas no bagageiro do carro. Enquanto o veículo fazia a curva lá embaixo na minha rua, eu suspirei feliz, dando pulinhos de alegria e fazendo tchauzinho.  Que felicidade a minha, ufa!  Até que enfim pode tomar posse do meu quarto novamente. Precisei trocar  os travesseiros, com odor inexplicável, e o colchão, que estava mijado. De resto,  tudo pareceu de volta ao normal. Que bom ter minha vidinha de volta! Lar, doce lar!