Há quantos anos eu não via a Tia Deuzinete? Tentei calcular,
puxei a memória até lembrar aquele dia. As férias escolares a gente passava no
sítio. O pomar com jabuticabeiras, abacateiros e limoeiros. Goiaba com bicho,
fiapos de manga presos nos dentes, mastigar cana-de-açúcar até virar bagaço. A
vida corria lenta, morna, azulzinha. Doce época que foi a infância, a
adolescência. Tempo bom demais! Titia costumava nos acompanhar nessas
empreitadas.
Tantos anos mais tarde, o convite para Titia visitar São
Paulo partiu da Tia Marieta, prima-irmã de Tia Deuzinete. Quem a convidou
deveria hospedá-la, mas a missão foi a mim entregue. A casa de Tia Marieta
pareceu muito distante do posto de saúde onde Tia Deuzinete deveria fazer seu
tratamento para úlcera varicosa, coisa que deu em suas pernas.
E lá fui eu na rodoviária buscar Titia, munida de muita boa
vontade, valores morais elevados, compaixão e senso familiar digno da perfeição
retratada naquela propaganda de margarina. Juro, em minha cabeça até tocava
insistentemente aquela música que fala do amor ao próximo: é preciso amar as pessoas como se não
houvesse amanhã!
Mal aquele ônibus proveniente da Serra do Piriri atrelou na
rodoviária, eu me aproximei da plataforma imbuída do mais alto espírito de
amor, bondade, carinho sem fim por minha tia idosa, que eu não via há... Há... Trinta
e quatro anos!
Tia Deuzinete, em 1978, tinha mais ou menos uns cinquenta
anos de idade. Era gordinha, tingia os cabelos de cor de burro quando foge, não
depilava as pernas e não suportava tomar sol, nem mesmo em nossas viagens à
praia. Um tanto rabugenta, em sua árida
viuvez, não teve filhos que a ocupassem. Titia era um tanto desocupada, pra
dizer a verdade. Vivia da pensão pós-morte do Tio Nicolau e não fazia muita
coisa da vida, ou melhor, fazia sim: cuidava da vida alheia. Sabia de tudo o
que acontecia na sua rua, na rua de cima, na rua de baixo. Era a fiscal da vida
dos outros. Em suma, Tia Deuzinete era fofoqueira. Passava uma temporada na
casa de um parente, depois rumava pra casa de outro parente, outro e outro.
Itinerante, por assim dizer. Falava mal de todos, falava de uns para os outros.
Era um inferno!
Ah, lembrei uma história! Passamos a Semana Santa e Páscoa
no sítio. Naquela época, minha avó preparava deliciosas compotas e geleias com
as frutas colhidas de nosso pomar. Os quitutes eram deliciosos e preparados no
fogão à lenha, em pesadas panelas de ferro. Titia, muito religiosa, começava
seu jejum na quarta-feira de cinzas, alimentava-se apenas com uma sopinha rala,
torradinhas e chá. Na quaresma Titia emagrecia que era uma beleza, mas estava
longe de ser formosa, tinha o semblante
sempre fechado, os cabelos presos em um coque baixo e amarrados com grampos de
cor preta.
A Páscoa significava muitas guloseimas, especialmente na
sexta-feira, quando bebíamos sangria,
preparada para acompanhar a bacalhoada no forno e o arroz branquinho. De
sobremesa doce de leite, figos em calda, goiabada cascão. Pois Tia Deuzinete, assim que despertou na
sexta-feira da paixão, vestiu-se de preto da cabeça aos pés. Titia parecia um urubu! Com o terço nas mãos
e a expressão ainda mais sisuda do que o habitual, decretou que naquele dia o jejum
da família seria total: somente água, nada mais, em homenagem a Nosso Senhor
Jesus Cristo.
Tibúrcia, nossa cozinheira, foi proibida de preparar ao
menos o café da manhã. De nada adiantou um e outro resmungar. Era dia
santificado, dia de chorar pelos nossos pecados. O jeito era fugir daquele luto,
dar uma escapadinha e contrabandear maria-mole, pão doce e balinha puxa-puxa
para o meu quarto. Sob o meu travesseiro Titia flagrou o resultado do meu furto
à despensa. Uma trilha de formiguinhas me dedurou. Apanhei: - Diva, estique sua
mão. Fechei os olhos e, enquanto meus dedos ardiam com a chinelada, escutei o “splac”
daquele chinelo de quarto, de tecido rosa, estalar em minha mão. Doeu,
muito!
Por sorte, o dia seguinte era aleluia! A fome era tanta que,
se eu pudesse, comeria um bolo sozinha. Deve vir desse episódio o meu atual
aumento de peso. Preciso anotar e contar à endocrinologista: tenho trauma de
Tia Deuzinete!
E lá estava a Titia, parada no topo da escada do ônibus. –
Não quero ajuda, sou velha, mas não estou imprestável!
Desceu a escada com muito sacrifício, um tanto aflitiva a
cena. Olhou-me com arzinho de nojo, mediu-me da cabeça aos pés. – Quem é você?
- Titia, querida, como a senhora está? Sou eu, sua sobrinha,
Diva!
- Diva? Engordou! Tá horrorosa!
Ela não precisava dizer mais nada. Eu levei Titia pra minha
casa, tentei acomodá-la da melhor forma possível. Foram quinze dias de
martírio, uma experiência que pretendo não repetir. Ela conseguiu me convencer
que minha cama, meu quarto, eram mais apropriados para o seu conforto e restabelecimento de sua saúde. E eu fui
dormir no quarto de hóspedes. Ela não
suportava: meu cachorro, o tempero da minha comida, meus amigos, meu
apartamento. Enfim, ela não me suportava e eu já começava a retribuir a esse
desafeto na mesma moeda. Descobri que eu odiava Tia Deuzinete!
Para não ter que enfrentar a chatice de Titia eu comecei a
fazer hora extra no trabalho. Quando chegava em casa, ela estava dormindo e
roncando em minha saudosa caminha. Tudo correu relativamente mal, porém de modo
contornável, até o dia em que o vaso sanitário da suíte entupiu. Facilmente
descobri o que havia caído na privada. Essa mania de Titia deixar a dentadura
sobre a pia do banheiro terminou mal, muito mal. Foi necessário chamar o
encanador. Diagnóstico: o vaso sanitário precisava ser removido, para que a
dentadura fosse capturada e o encanamento desbloqueado. Enquanto isso, até que
enfim, Titia permaneceu de boca fechada, para que sua banguela não aparecesse. Após
esse episódio, Tia Deuzinete decidiu ir embora de minha casa. Um lar nada
cristão, em sua opinião. Ali, ninguém ia à missa, ninguém rezava o terço.
Pecadora que sou, não consegui convencê-la que a dentadura caiu no vaso por um
acidente. Chegou a insinuar que meu cachorro a pegou e atirou dentro da
privada. Impossível, Bono é baixinho e não alcança a pia do banheiro.
Prima Rosa veio buscar Tia Deuzinete. Acompanhei as duas até
o portão, ajudei a acomodar as malas no bagageiro do carro. Enquanto o veículo
fazia a curva lá embaixo na minha rua, eu suspirei feliz, dando pulinhos de
alegria e fazendo tchauzinho. Que felicidade
a minha, ufa! Até que enfim pode tomar
posse do meu quarto novamente. Precisei trocar os travesseiros, com odor inexplicável, e o
colchão, que estava mijado. De resto, tudo pareceu de volta ao normal. Que bom ter
minha vidinha de volta! Lar, doce lar!