Todo final de tarde soprava a brisa fresca vinda do mar. A
mudança pra casa da praia havia lhe feito muito bem. Solange estava bronzeada, cabelos cacheados
e soltos, parecia ter rejuvenescido dez anos. Resolveu caminhar descalça à
beira-mar. Mergulhou em pensamentos.
Há trinta anos havia conhecido o primeiro marido. Justamente ali, naquela praia. Dizem que amor de praia não sobe a serra, mas os dois
começaram a namorar no verão de 82 e viveram felizes para sempre. Sempre? Todo
sempre um dia acaba. O divórcio chegou em 2002.
Vinte anos de casamento é coisa à beça! O ex
tinha Facebook. Conseguia ver sua nova foto do perfil, mais magro e
feliz. Feliz sem ela. Seria melhor que
não tivesse foto alguma. A filha nasceu, cresceu e foi embora morar em
Roma. Artista, a menina era artista plástica, orgulho da mãe. Precisava de notícias, a garota parecia não
ler suas mensagens inbox.
O pensamento voou novamente ao passado distante. Pai e mãe deveriam ser eternos. Seu pai
morreu cedo, ela ainda era adolescente. A mãe foi embora aos pouquinhos, perdeu
a memória, se refugiou no passado vitimada pelo Alzheimer. Onde estaria sua irmã? Estava sempre tão
ocupada e morando tão longe, pena que não tinha Facebook, poderiam conversar no
bate papo, trocar fotos, algo assim.
Observou o voo de uma gaivota. Que pena, estava sem o
iPhone. Poderia tirar a foto e enviar pro seu perfil. Suas amigas, todas elas
morando na capital, costumavam curtir as fotos marítimas, que colecionava aos
montes agora.
Pérsio. Onde estaria o Pérsio, aquele primeiro amor do tempo
de escola. Não podia esquecer de pesquisar no... Facebook, claro. Caminhou até
a ponta da praia e voltou com passos apressados. Melhor chegar em casa, tomar
um banho e ligar o computador. E se o Pérsio também estivesse divorciado? Se
morasse ali perto? Poderiam se reencontrar, quem sabe reatar aquele romance
amarelado pelo passar do tempo?
Seu notebook era novo, coisa comprada em oito parcelas no
cartão de crédito. Internet como mandava o figurino: sem fio. Colocou na busca
do Facebook o nome do ex-amor: Pérsio das Flores Paixão. Imediatamente apareceu
o perfil do dito. Irreconhecível. Os cachos de cabelos loiros, que garantiram o
apelido de Anjinho, haviam caído todos. Careca, o Pérsio agora era careca.
Gordo, rosto redondo. No mínimo, aquela fotografia do perfil se parecia com a
foto do pai do Pérsio. Resolveu clicar nas informações do usuário. Sobre: mora
em São Paulo, é engenheiro civil, está
em um relacionamento sério com Ana Paula da Silva, estudou no colégio Deus Meu,
em São Paulo. Não pensou duas vezes, enviou convite de amizade para o Pérsio,
ou aquilo o que restava dele. Deveria existir algum modo de visualizar fotos
fechadas com cadeado. Coisa pra hacker, certamente. Convite enviado, decidiu compartilhar o feito
com a Rosana, sua amiga do tempo de escola. Juntas riram e se divertiram com a
ideia. Rosana também enviou convite de amizade pro Pérsio.
Duas semanas, esse foi o tempo que demorou pro tal convite
ser aceito. Ele aceitou e gentilmente enviou uma frase pra ex-namorada: “bom
reencontrá-la, boa tarde”. Coisa mais
fria, brega, formal, sem graça. Nem parecia o Pérsio! Foi xeretar seu perfil.
Fotos de carros, motos, da namorada. Idade pra ser filha mais nova dele. Uma
garota. Pérsio, portanto, era quase um pedófilo. De anjinho a demônio, que
trajetória infeliz a dele. Sentiu uma ponta de inveja, ou talvez de frustração.
Mas, teria ele se casado, tido filhos? Não conseguiu descobrir, talvez um dia
ele aparecesse online no papo e, então, poderia fazer perguntas muitas que
pulavam histéricas em sua cabeça.
Seis dias sem qualquer contato com Pérsio. Pareceu não
adiantar nada tê-lo adicionado no Facebook. Talvez, a namorada o obrigasse a
ficar longe da internet. Talvez, ele estivesse tão exausto de tentar acompanhar
a garota que, agora, estivesse sem ânimo pra nada, nem mesmo pra digitar poucas
letrinhas. Um mês, nada. Seis meses, nada. Até havia se esquecido da inclusão
do Pérsio no seu perfil quando, um dia,
recebeu uma longa e simpática mensagem dele: “Solange, há quanto tempo! Somente
agora pude ver seu perfil calmamente. Observei suas fotos. Você continua linda!
Parece que mora na praia, isso é muito bom. Por aqui continuo a luta pela minha
recuperação. Não sei se você soube, eu sofri um acidente de carro há mais de um ano e
fiquei oito meses internado no hospital. No acidente faleceu minha namorada, a
Aninha. Viu as fotos da Ana Paula? Eu gostaria muito de te rever! Moro em São
Paulo, vou te deixar meu e-mail pessoal, meu celular e meu telefone fixo.
Quando você vier a São Paulo me avise e venha me visitar. Um beijo e carinho,
Pérsio”.
Ela leu a mensagem, releu duzentas vezes, no mínimo. Pérsio
havia sofrido um grave acidente. Oito meses no hospital, muito tempo! Melhor se
apressar e logo ir a São Paulo. Antes, deixou recado inbox pra Rosana: “Rô, estou indo até Sampa resolver umas
coisas, quando eu voltar te contarei uma novidade. Bjs”.
Ver o Pérsio depois de tantos anos, isso era mais do que uma
alegria. Suas mãos suavam gelado, seu coração estava acelerado. Quando o
porteiro do prédio avisou que ela poderia subir até o apartamento, entrou no
elevador e sentiu as pernas bambas. A poucos segundos de rever o maior amor que
tinha tido na vida, seu primeiro amor!
Uma senhora atendeu à porta, estava vestida de branco. Enfermeira,
talvez? Sentada em um sofá confortável
aguardou longos cinco minutos. Eis que ele surgiu diante de si. Em uma cadeira
de rodas. Pérsio, no acidente, havia fraturado uma vértebra cervical. Não
andaria mais.
Essa mania de idealizar as situações, ela achou que
encontraria Pérsio, no máximo, com uma cicatriz no queixo. Jamais havia
dimensionado a gravidade da situação. Os dois conversaram durante mais de
quatro horas. Falaram do acidente, do tempo de escola, dos amigos perdidos no
passado, do casamento e divórcio de ambos, dos planos de futuro. Quando se
despediram, ficou a promessa: se falariam online muitas vezes, não perderiam o
contato no Facebook, jamais. Coisa difícil, o Pérsio não era muito chegado nesse
tipo de mensagem, pouco conversava por ali. Resolveu desencanar, não investir
em uma reaproximação. Certamente, ele sofria com todo o resultado do acidente e não desejava sua companhia.
Ela voltou pra praia e, sempre que caminhava à beira mar
voltava a mergulhar naquela época, nos sonhos, no amor do passado. Foi em uma dessas caminhadas que conheceu o
salva vidas mais bonitão daquelas bandas, o Joel. Papo vai, papo vem, encontrou
alguém fora da internet, alguém de carne e osso, ou melhor, de sensacionais músculos
peitorais, bíceps, tríceps. Namorar um
salva vidas, melhor que isso só mesmo casar com o salva vidas. No dia de seu
casamento, lá estava Pérsio. Acompanhado de uma moreninha com não mais que 20 anos. Sua nova namorada. Saia curtinha, pernas longas e bem torneadas. Entendeu
com clareza: o negócio dele era gatinha, não gatona com mais de 50 anos.
Até hoje eles conversam no Facebook, perdem o contato
ocasionalmente e, depois de tempos, voltam a conversar. Por falar em Facebook, o
salva vidas também tem um perfil. Fechado, completamente fechado, um mistério.
Jurou: ainda descobriria a senha e o segredo. Mas, isso é outra história. O que
importa é que vive à beira mar, que sonha enquanto pisa descalça na areia e que
alguém com braços fortes, praticamente, a salvou. Tudo o mais pertence ao
futuro, tempo que ainda não nasceu.
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