Ele puxou os fios longos dos meus cabelos. Arrancou dois,
três fios e disparei um gritinho de dor e revolta. O professor de matemática
interrompeu a equação que rabiscava na lousa. – Diva e Avelino, levantem-se.
Levantei-me, ainda a me queixar. Avelino, o garoto baixinho
e com o rosto coberto de acne ostentava os meus fios de cabelo entrelaçados em
seus dedos. Desde o começo do ano letivo eu vivia a esquivar-me de seus olhares,
bilhetinhos e puxões de cabelos. As piadinhas dos colegas eram muitas e eu
fugia do garoto do jeito que podia.
Na diretoria, sentados lado a lado, expliquei ao sisudo Sr.
Nestor, diretor do curso secundário, que meu grito de dor escapou de modo
involuntário. Ambos advertidos, voltamos à aula sob risinhos abafados pelos
colegas.
No ano seguinte, Avelino mais alto, alcançou meus lábios e
estalou um beijo babado e roubado. A aula de educação física ia pela metade
quando fui pega de surpresa, pega pelos braços e reagi como pude: soquei
Avelino bem no meio do rosto, quebrei seus óculos e arranhei profundamente sua
testa. Dessa vez, a advertência do diretor foi além da reprimenda
verbal. Suspensa três dias, fiquei detida na sala da diretoria escolar até meu
pai vir me buscar no final da manhã. Aos
prantos e sem indulgência, expliquei o beijo forçado. Avelino teve a mesma
sorte que eu, suspenso voltou pra casa escoltado pelos pais.
Três anos assim, ele ousava se aproximar de mim de um jeito
equivocado, eu o evitava, brigávamos, parávamos na diretoria da escola, nossos
pais nos resgatavam das garras do diretor, os colegas riam de nossa sorte e os
professores torciam para que sentássemos longe um do outro, sob o risco da aula
ser interrompida com gritinhos, risinhos e bilhetinhos.
Quando prestei vestibular, naquele ano não tive notícia de
Avelino, que tinha se mudado para Londres e cursava jornalismo. Cada um dos colegas tomou um rumo e o mundo miudinho da sala de aula
se tornou muito maior, com novas possibilidades e novos personagens. Conheci o
Zé Marcelo, começamos a namorar. De vez em quando o Avelino telefonava, ou escrevia. Nem sempre eu respondia, atendia, tentava deixar o passado apenas nas lembranças e nada mais. Cursei a faculdade, sem mais sequer lembrar-me
dos episódios da adolescência, anos se passaram até que, um dia, ele me encontrou em um barzinho da Vila Madalena. Ambos adultos, livres, eu tinha me separado recentemente. Daquela vez os beijos não foram roubados e até imaginei que pudéssemos iniciar a nossa história a dois. Mas, ele voltou pra Londres e eu fiquei em São Paulo. Às vezes ele vinha ao Brasil e nos encontrávamos, às vezes eu ia a Londres. Assim foi até que em uma noite de outubro telefonou pra mim a Ana Célia e
me contou que ele, o Avelino, tinha morrido em um acidente.
Naquele tempo a morte de pessoas queridas ainda não havia me
tocado. Meus pais, avós, todos estavam vivos. Meu coração se fechou no luto surpreendente de
quem gostaria de ter novamente a oportunidade de rir, ao invés de estapear; de
compreender, ao invés de brigar.Tentei imaginar como teria sido a vida se eu tivesse correspondido ao amor de Avelino, se isso o teria salvado do acidente e me salvado da solidão. Afundei em lágrimas de tristeza durante meses seguidos.
Lá se foram muitos anos. Outro dia estava caminhando no parque
quando encontrei a Ana Célia. Marcamos um almoço e voltamos no tempo, como se a
vida não tivesse levado nossa juventude e encerrado os sonhos de menina. Voltei
pelo caminho que fazia para chegar na escola. Parei em frente ao antigo colégio. As mesmas árvores frutíferas na calçada, a mesma fachada do prédio, de cor acinzentada. Observei os alunos em seus uniformes escolares modernos, em bando a rir, naquela inocência de quem tem
a vida toda pela frente. Cancelei a reunião de trabalho, fui pra casa e tomei
um remédio pra dor de cabeça, quisera que existisse analgésico pra dor das lembranças.
Este texto é a minha prece, não é uma oração convencional. Que meu abraço e meu beijo cheguem aí no céu, entre nuvens. Comporte-se bem
por aí, Avelino, não puxe as asinhas dos anjos e nem roube beijos das estrelas. Até um dia. Amém!