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Apresentação

Este blog nasceu no blog Janela das Loucas, onde assinava "Diva Latívia". Ali permaneci durante muito tempo, como autora principal das crônicas do blog. Redescobri que escrever é vital pra mim, guiada e editada por Abílio Manoel, cantor, compositor, cineasta e meu querido amigo. O Janela das Loucas não existe mais, Abílio foi embora pro Céu. Escrevo porque tenho esse dom divino, mas devo ao Abílio este blog, devo ao Abílio a saudade que me acompanha diariamente. Fiz e faço deste blog uma homenagem a aquele que se tornou meu irmão, de alma e coração. Aqui o tema é variado: cotidiano, relacionamentos e comportamento, em prosa e versos.







3 de out. de 2014

BEIJOS ROUBADOS

Ele puxou os fios longos dos meus cabelos. Arrancou dois, três fios e disparei um gritinho de dor e revolta. O professor de matemática interrompeu a equação que rabiscava na lousa. – Diva e Avelino, levantem-se.
Levantei-me, ainda a me queixar. Avelino, o garoto baixinho e com o rosto coberto de acne ostentava os meus fios de cabelo entrelaçados em seus dedos. Desde o começo do ano letivo eu vivia a esquivar-me de seus olhares, bilhetinhos e puxões de cabelos. As piadinhas dos colegas eram muitas e eu fugia do garoto do jeito que podia.
Na diretoria, sentados lado a lado, expliquei ao sisudo Sr. Nestor, diretor do curso secundário, que meu grito de dor escapou de modo involuntário. Ambos advertidos, voltamos à aula sob risinhos abafados pelos colegas.
No ano seguinte, Avelino mais alto, alcançou meus lábios e estalou um beijo babado e roubado. A aula de educação física ia pela metade quando fui pega de surpresa, pega pelos braços e reagi como pude: soquei Avelino bem no meio do rosto, quebrei seus óculos e arranhei profundamente sua testa. Dessa vez, a advertência do diretor foi além da reprimenda verbal. Suspensa três dias, fiquei detida na sala da diretoria escolar até meu pai vir me buscar  no final da manhã. Aos prantos e sem indulgência, expliquei o beijo forçado. Avelino teve a mesma sorte que eu, suspenso voltou pra casa escoltado pelos pais.
Três anos assim, ele ousava se aproximar de mim de um jeito equivocado, eu o evitava, brigávamos, parávamos na diretoria da escola, nossos pais nos resgatavam das garras do diretor, os colegas riam de nossa sorte e os professores torciam para que sentássemos longe um do outro, sob o risco da aula ser interrompida com gritinhos, risinhos e bilhetinhos.
Quando prestei vestibular, naquele ano não tive notícia de Avelino, que tinha se mudado para Londres e cursava jornalismo. Cada um dos colegas tomou um rumo e o mundo miudinho da sala de aula se tornou muito maior, com novas possibilidades e novos personagens. Conheci o Zé Marcelo, começamos a namorar.  De vez em quando o Avelino telefonava, ou escrevia. Nem sempre eu respondia, atendia, tentava deixar o passado apenas nas lembranças e nada mais. Cursei a faculdade, sem mais sequer lembrar-me dos episódios da adolescência, anos se passaram até que, um dia, ele me encontrou em um barzinho da Vila Madalena. Ambos adultos, livres, eu tinha me separado recentemente. Daquela vez os beijos não foram roubados e até imaginei que pudéssemos iniciar a nossa história a dois. Mas, ele voltou pra Londres e eu fiquei em São Paulo. Às vezes ele vinha ao Brasil e nos encontrávamos, às vezes eu ia a Londres. Assim foi até que em uma noite de outubro telefonou pra mim a Ana Célia e me contou que ele, o Avelino, tinha morrido em um acidente.
Naquele tempo a morte de pessoas queridas ainda não havia me tocado. Meus pais, avós, todos estavam vivos. Meu coração se fechou no luto surpreendente de quem gostaria de ter novamente a oportunidade de rir, ao invés de estapear; de compreender, ao invés de brigar.Tentei imaginar como teria sido a vida se eu tivesse correspondido ao amor de Avelino, se isso o teria salvado do acidente e me salvado da solidão. Afundei em lágrimas de tristeza durante meses seguidos.
Lá se foram muitos anos. Outro dia estava caminhando no parque quando encontrei a Ana Célia. Marcamos um almoço e voltamos no tempo, como se a vida não tivesse levado nossa juventude e encerrado os sonhos de menina. Voltei pelo caminho que fazia para chegar na escola. Parei em frente ao antigo colégio. As mesmas árvores frutíferas na calçada, a mesma fachada do prédio, de cor acinzentada. Observei os alunos em seus uniformes escolares modernos, em bando a rir, naquela inocência de quem tem a vida toda pela frente. Cancelei a reunião de trabalho, fui pra casa e tomei um remédio pra dor de cabeça, quisera que existisse analgésico pra dor das lembranças.
Este texto é a minha prece, não é uma oração convencional. Que meu abraço e meu beijo cheguem aí no céu, entre nuvens. Comporte-se bem por aí, Avelino, não puxe as asinhas dos anjos e nem roube beijos das estrelas. Até um dia. Amém!

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