É proibida a reprodução não autorizada dos textos deste blog, de acordo com a Lei nº9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que regula os direitos autorais.

Apresentação

Este blog nasceu no blog Janela das Loucas, onde assinava "Diva Latívia". Ali permaneci durante muito tempo, como autora principal das crônicas do blog. Redescobri que escrever é vital pra mim, guiada e editada por Abílio Manoel, cantor, compositor, cineasta e meu querido amigo. O Janela das Loucas não existe mais, Abílio foi embora pro Céu. Escrevo porque tenho esse dom divino, mas devo ao Abílio este blog, devo ao Abílio a saudade que me acompanha diariamente. Fiz e faço deste blog uma homenagem a aquele que se tornou meu irmão, de alma e coração. Aqui o tema é variado: cotidiano, relacionamentos e comportamento, em prosa e versos.







13 de jan. de 2015

O GENERAL DO ESTRELA DA GLÓRIA

O antigo edifício necessitava de reforma. Vinte andares, cento e vinte apartamentos, quinhentos e treze moradores, um zelador, quatro porteiros, dois faxineiros.
Desde a fachada enegrecida do prédio, até as vidraças faltantes, o edifício sorria sem dentes a ostentar o avesso da prosperidade. Os elevadores a chacoalhar e ranger.  Os interfones eram alegoria a mais, emudecidos com sua fiação exposta, fios coloridos a percorrer corredores e andares. Ali tudo a desfolhar, descamar, despencar, com exceção dele: o velho zelador, Adamastor Raimundo de Oliveira, o Adão, como era conhecido no pedaço.
Assim que o edifício Estrela da Glória começou a ser habitado, em 1963, Adão foi contratado para realizar serviços de limpeza. Na época, o zelador era o Laureano, um pernambucano baixinho e sisudo, que morreu atropelado em frente à padaria em 1970. Desde esse dia, em pleno revés do infortúnio, Adão assumiu o posto de zelador, com o direito de usar o quepe azul-marinho, que levava o nome do edifício bordado em cor dourada. Segurou as lágrimas de emoção no dia em que largou baldes e vassouras e, de barriga pra dentro, peito pra fora, plantou-se na portaria: ali estava o general do Estrela da Glória.
Querido por alguns, temido por outros, Adão comandava os funcionários com severidade e os moradores ele tratava com a cordialidade do bem servir. Entendia de remendos diversos, aplacava curtos-circuitos, libertava prisioneiros dos elevadores. Cada parafuso, cano ou fio daquele prédio era seu velho conhecido. Os habitantes, todos eles, estavam anotados com seus nomes, sobrenomes e telefones no caderno de capa dura que guardava como um tesouro. Letra miúda e quase ilegível, conhecia detalhes íntimos da vida  de gente de todos os andares: ouvia desabafos, dava conselhos, apartava brigas e até de primeiros socorros se tornou entendedor: infartos, fraturas, desmaios, lá ia Adão com sua caixinha de remédios a administrar leite de magnésia, água oxigenada, arnica. Quarenta e quatro anos, oito meses e dezenove dias, cada pastilha que caiu da fachada sem reposição era uma ruga a mais no rosto moreno do velho Adão.
Hoje, entre uma garfada e outra do almoço, li no obituário do jornal o seguinte anúncio: “É com extremo pesar que os moradores e funcionários do Edifício Estrela da Glória comunicam o falecimento de seu zelador, Adamastor Raimundo de Oliveira, Adão. Convidamos a todos para a missa de sétimo dia, que será realizada na Igreja Nossa Senhora da Glória, no bairro do Aterro”.
Adão morreu uniformizado, aos setenta e nove anos. Morreu em frente ao prédio, morte natural e súbita. O resgate chegou a tentar ressuscitá-lo, em vão. O olhar dos curiosos se apinhava em torno do corpo inerte do velho zelador do Estrela da Glória, que viveu e morreu em serviço. O quepe azul jogado na calçada, a observar a movimentação.

Nenhum comentário: