O antigo edifício necessitava de reforma. Vinte andares, cento
e vinte apartamentos, quinhentos e treze moradores, um zelador,
quatro porteiros, dois faxineiros.
Desde a fachada enegrecida do prédio, até as vidraças faltantes,
o edifício sorria sem dentes a ostentar o avesso da prosperidade. Os elevadores
a chacoalhar e ranger. Os interfones eram
alegoria a mais, emudecidos com sua fiação exposta, fios coloridos a percorrer
corredores e andares. Ali tudo a desfolhar, descamar, despencar, com exceção
dele: o velho zelador, Adamastor Raimundo de Oliveira, o Adão, como era
conhecido no pedaço.
Assim que o edifício Estrela da Glória começou a ser habitado,
em 1963, Adão foi contratado para realizar serviços de limpeza. Na época, o
zelador era o Laureano, um pernambucano baixinho e sisudo, que morreu atropelado
em frente à padaria em 1970. Desde esse dia, em pleno revés do infortúnio, Adão
assumiu o posto de zelador, com o direito de usar o quepe azul-marinho, que
levava o nome do edifício bordado em cor dourada. Segurou as lágrimas de emoção
no dia em que largou baldes e vassouras e, de barriga pra dentro, peito pra
fora, plantou-se na portaria: ali estava o general do Estrela da Glória.
Querido por alguns, temido por outros, Adão comandava os
funcionários com severidade e os moradores ele tratava com a cordialidade do
bem servir. Entendia de remendos diversos, aplacava curtos-circuitos, libertava
prisioneiros dos elevadores. Cada parafuso, cano ou fio daquele prédio era seu
velho conhecido. Os habitantes, todos eles, estavam anotados com seus nomes,
sobrenomes e telefones no caderno de capa dura que guardava como um tesouro.
Letra miúda e quase ilegível, conhecia detalhes íntimos da vida de gente de todos os andares: ouvia desabafos,
dava conselhos, apartava brigas e até de primeiros socorros se tornou entendedor: infartos, fraturas, desmaios, lá ia Adão com sua caixinha de remédios a
administrar leite de magnésia, água oxigenada, arnica. Quarenta e quatro anos,
oito meses e dezenove dias, cada pastilha que caiu da fachada sem reposição era
uma ruga a mais no rosto moreno do velho Adão.
Hoje, entre uma garfada e outra do almoço, li no obituário
do jornal o seguinte anúncio: “É com extremo pesar que os moradores e
funcionários do Edifício Estrela da Glória comunicam o falecimento de seu
zelador, Adamastor Raimundo de Oliveira, Adão. Convidamos a todos para a missa
de sétimo dia, que será realizada na Igreja Nossa Senhora da Glória, no bairro
do Aterro”.
Adão morreu uniformizado, aos setenta e nove anos. Morreu em
frente ao prédio, morte natural e súbita. O resgate chegou a tentar
ressuscitá-lo, em vão. O olhar dos curiosos se apinhava em torno do corpo
inerte do velho zelador do Estrela da Glória, que viveu e morreu em serviço. O quepe azul jogado na calçada, a observar a movimentação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário