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Apresentação

Este blog nasceu no blog Janela das Loucas, onde assinava "Diva Latívia". Ali permaneci durante muito tempo, como autora principal das crônicas do blog. Redescobri que escrever é vital pra mim, guiada e editada por Abílio Manoel, cantor, compositor, cineasta e meu querido amigo. O Janela das Loucas não existe mais, Abílio foi embora pro Céu. Escrevo porque tenho esse dom divino, mas devo ao Abílio este blog, devo ao Abílio a saudade que me acompanha diariamente. Fiz e faço deste blog uma homenagem a aquele que se tornou meu irmão, de alma e coração. Aqui o tema é variado: cotidiano, relacionamentos e comportamento, em prosa e versos.







26 de jul. de 2012

CORAÇÃO DE CRISTAL

Não sei explicar, deu branco.  Sensação de vergonha, misturada com vontade de sumir. Olhei pra porta, eu queria sair correndo de lá!  Acho que também mirei a janela!Tanta cerimônia para me receber, tanto carinho! Há quatro anos a gente não se encontrava. Amigo é assim mesmo, a gente fica muito tempo sem se encontrar, mas consegue pegar o fiozinho da meada e continuar a última prosa. O papo estava ótimo, o jantar delicioso. Bebemos uma garrafa de vinho, ele abriu a segunda garrafa sob meu protesto. Ríamos e lembrávamos nossa adolescência, episódios divertidos e inesquecíveis que salpicaram a nossa juventude. Cumplicidade!
A segunda garrafa de vinho potencializa as emoções. Risos se transformam em gargalhadas, saudade se transforma em lágrimas. Patético, talvez. A ideia foi dele: um brinde aos anos dourados! A segunda garrafa de vinho potencializa a força, diminui os reflexos, deixa tudo zuzubem. Esbarrei na taça de vinho que meu amigo havia herdado de sua bisavó, a senhora italiana da foto em preto e branco no porta-retratos. A dona pareceu olhar-me furiosa, deu medo de fantasma. Dezenas de caquinhos sobre o chão banhado de vinho tinto. Eu ria, ele chorava. Por fim, eu chorava e ele ria. Um desastre! 
Fui embora pra casa tentando equilibrar-me sobre o salto alto. No dia seguinte acordei com a boca seca, parecia ter comigo algodão. Aos pouquinhos, enquanto escovava os dentes, lembrei-me da noite anterior e do falecimento da rara taça de cristal.Decidi procurar um antiquário, talvez eu encontrasse uma peça semelhante àquela que quebrei. 
Antiquários são lugares muito interessantes. Tem de tudo: relógio cuco, cristaleira, pianola, ventarola. Eu, meio de ressaca, precisava resolver depressa o meu problema.
- Bom dia, o senhor tem taças de cristal?
A quantidade de peças de cristal era imensa. Nada parecido com a finada tacinha.  Pensei o seguinte: talvez, se eu comprasse meia-dúzia de taças antigas, eu reparasse o mal feito. Enquanto eu admirava uma peça e outra, meu celular tocou. Ah, bolsa de mulher tem de tudo, tem lixa de unha, tem lencinho de papel, tem estojinho de maquiagem, tem escova de cabelos, tem carteira, tem chaveiro. O celular tocou até parar de tocar e eu não o encontrei. Voltou a tocar e eu, impaciente, balancei a bolsa. Foi assim que esbarrei em um vaso estilo rococó, de cor azul turquesa. Feito slow motion, lentamente o bicho rodopiou, envergou pra direita, bailou no ar e... Crashhhhhhhhh....
- Senhora, por gentileza, acompanhe-me até o meu escritório.
O escritório do antiquário era uma sala com aroma de naftalina. Ali tinha de tudo um pouco: peso de papel, estatueta de bronze, relógio carrilhão. Preferi ficar em pé, tentei ficar imóvel. Meu coração ainda estava acelerado, tal foi o susto do segundo mal feito que cometi em menos de doze horas.
- O valor do vaso da Marquesa de Guadalupe, do século XIX, é dois mil e oitocentos reais. Aceito cartão Manda Card. Como a senhora prefere pagar?
Gastei no antiquário três mil reais. Paguei a conta do tal do vaso da marquesa sei lá das quantas e mais duzentos reais em uma tacinha que, segundo o antiquário, pertenceu à bisavó da tal da marquesa. 
O presente entreguei pessoalmente, dois anos mais tarde, em um café no centro da cidade. Um final de tarde gelado na cidade de São Paulo. Entre risos, lágrimas e recordações muitas do passado, praticamente esquecemos aquela noite em que a coleção de taças de vinho de família terminou desfalcada. Assim é a amizade, o que importa é o conteúdo, não o recipiente. 



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