A segunda garrafa de vinho potencializa as emoções. Risos se
transformam em gargalhadas, saudade se transforma em lágrimas. Patético,
talvez. A ideia foi dele: um brinde aos anos dourados! A segunda garrafa de
vinho potencializa a força, diminui os reflexos, deixa tudo zuzubem. Esbarrei
na taça de vinho que meu amigo havia herdado de sua bisavó, a senhora italiana
da foto em preto e branco no porta-retratos. A dona pareceu olhar-me furiosa,
deu medo de fantasma. Dezenas de caquinhos sobre o chão banhado de vinho tinto. Eu
ria, ele chorava. Por fim, eu chorava e ele ria. Um desastre!
Fui embora pra casa tentando equilibrar-me sobre o salto
alto. No dia seguinte acordei com a boca seca, parecia ter comigo algodão. Aos
pouquinhos, enquanto escovava os dentes, lembrei-me da noite anterior e do
falecimento da rara taça de cristal.Decidi procurar um antiquário, talvez eu encontrasse uma
peça semelhante àquela que quebrei.
Antiquários são lugares muito interessantes. Tem de tudo: relógio
cuco, cristaleira, pianola, ventarola. Eu, meio de ressaca, precisava resolver
depressa o meu problema.
- Bom dia, o senhor tem taças de cristal?
A quantidade de peças de cristal era imensa. Nada parecido
com a finada tacinha. Pensei o seguinte:
talvez, se eu comprasse meia-dúzia de taças antigas, eu reparasse o mal feito.
Enquanto eu admirava uma peça e outra, meu celular tocou. Ah, bolsa de mulher
tem de tudo, tem lixa de unha, tem lencinho de papel, tem estojinho de
maquiagem, tem escova de cabelos, tem carteira, tem chaveiro. O celular tocou
até parar de tocar e eu não o encontrei. Voltou a tocar e eu, impaciente,
balancei a bolsa. Foi assim que esbarrei em um vaso estilo rococó, de cor azul
turquesa. Feito slow motion, lentamente o bicho rodopiou, envergou pra direita,
bailou no ar e... Crashhhhhhhhh....
- Senhora, por gentileza, acompanhe-me até o meu escritório.
O escritório do antiquário era uma sala com aroma de
naftalina. Ali tinha de tudo um pouco: peso de papel, estatueta de bronze,
relógio carrilhão. Preferi ficar em pé, tentei ficar imóvel. Meu coração ainda
estava acelerado, tal foi o susto do segundo mal feito que cometi em menos de
doze horas.
- O valor do vaso da Marquesa de Guadalupe, do século XIX, é
dois mil e oitocentos reais. Aceito cartão Manda Card. Como a senhora prefere
pagar?
Gastei no antiquário três mil reais. Paguei a conta do tal
do vaso da marquesa sei lá das quantas e mais duzentos reais em uma tacinha que,
segundo o antiquário, pertenceu à bisavó da tal da marquesa.
O presente entreguei pessoalmente, dois anos mais tarde, em
um café no centro da cidade. Um final de tarde gelado na cidade de São Paulo.
Entre risos, lágrimas e recordações muitas do passado, praticamente esquecemos
aquela noite em que a coleção de taças de vinho de família terminou desfalcada.
Assim é a amizade, o que importa é o conteúdo, não o recipiente.
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