Moramos em um país tropical, clima variado de norte a sul,
leste a oeste. Inverno pra valer? Esqueça! Há os friorentos de plantão que se
queixam do frio durante o inverno, mas frio de verdade existe somente no
hemisfério norte do planeta. Friozinho não é frio pra valer. Porém, por aqui,
em território tupiniquim, provamos o calor tropical com toda a intensidade
possível. Haja calor neste verão! Escrevo este texto na cidade de São Paulo, a famosa
“terra da garoa”. Neste momento, 14h00, sobrevivo a 35 graus de temperatura na
sombra. Sob o sol o calor é outro e muito mais intenso.
Diva Latívia não gosta muito do calor. Verão é bom pra quem
está na praia, de preferência pulando ondinhas do mar. Paulistanos em geral
usam roupas sociais para trabalhar de segunda a sexta-feira. As mulheres podem usar vestidos, blusinhas
sem manga, sandálias, mas precisam prender os cabelos se não quiserem terminar
o dia com o visual de quem foi à sauna totalmente produzida. A maquiagem
derrete, os cabelos espetam, cacheiam, não há penteado que resista. Meu eterno companheiro tem sido um leque que
adquiri em uma feirinha no bairro da Liberdade, tradicional reduto oriental.
Sinto que estou em ebulição!
Lidar com documentos, papéis, carimbos, ir a repartições
públicas, isso faz parte da minha rotina profissional. Há alguns dias, mais uma
vez quase morta de calor, escolhi um vestido comportado, comprimento acima do
joelho. Para o frescor dos meus pés usei uma sandália. E lá fui eu, me abanando
com o leque, para o segundo andar da tal repartição. Para ser atendida naquele
forno precisei de uma senha. Busquei um lugar para sentar-me, achei uma cadeira
perto da janela. Dez, quinze minutos. Passei a observar meus companheiros de
infortúnio, gente que esperava ansiosa o chamado de seu número no painel
eletrônico. Bingo infeliz!
Lá pelas tantas, chegou ao local um senhor com idade para
ser meu pai. Barba e cabelos brancos, barriguinha protuberante. Pegou sua senha
e resmungou alguma coisa intraduzível. Sentou-se distante de mim. Inquieto,
parecia impaciente. Foi ao balcão de atendimento queixar-se com o funcionário,
o pouco que escutei levou-me a crer que não estava nada disposto a esperar o chamado da senha. Idosos tem atendimento
prioritário, mas antes dele haviam chegado outras pessoas idosas. O jeito era
esperar sua vez.
Eis que decidiu sentar-se perto de mim. Pareceu um filme
antigo, em preto e branco, em “slow motion” ele dirigiu a mim um olhar
significativo. Sou ótima quando o assunto é decifrar gente desconhecida.
Apostei comigo mesma que o velhinho pensou: ai meu tempo de garoto, quando eu
tinha cinquenta anos...
Colocou os óculos na ponta do nariz, pigarreou e veio aos
pouquinhos, passo a passo na minha direção. Olhou fixo para minhas sandálias e
subiu o olhar até meus joelhos. Há quanto tempo alguém não admirava assim os
meus joelhos? Nada de errado com minhas pernas, mas hoje em dia homens costumam
estar distraídos, atarefados e gostam de admirar outros atributos
femininos. Ajeitei-me na cadeira, não
sabia se me sentia lisonjeada, ou chateada, afinal eu estava vestida de acordo
com o decoro profissional exigido para o meu trabalho. Joelhos deixaram de ser
escondidos pelas mulheres há meio século, pelo menos. Qual seria o adjetivo
para qualificar um tarado por joelhos?
Joelhófilo?
Descruzei as pernas, tratei de juntar os pés bem
juntinhos e firmá-los no chão. Pensei: com tanto calor, como eu poderia
ter vestido uma calça comprida? Flagrei-me acanhada. Um velhinho a provocar o
meu pudor! Coloquei a pasta de documentos sobre meus joelhos. Decidi tapá-los.
Ele desviou o olhar, depois novamente pigarreou e pareceu grudar os olhos nos
meus pés. Justamente quando eu estava com os pés horríveis, não havia tempo para ir à pedicure.
Resolvi levantar-me e perguntar ao atendente da repartição
se aquilo tudo iria demorar demais. Levantei-me e senti o olhar do vovozinho a
me acompanhar com atenção. Arrisquei observá-lo, discretamente. Nossos olhares
se cruzaram e ele sorriu simpático. Creio, devolvi o sorriso.
Mais cinco minutos e, finalmente, meu número de senha foi
contemplado. Feliz da vida, tratei de resolver depressa a questão e, quando eu
desci os dois lances de escada e alcancei a rua, lá na calçada, virei-me
vitimada pelo magnetismo do vovô para o edifício da repartição. Pude observá-lo
na janela. Acenou pra mim.
Voltei pro escritório pensativa. Paquerada pela terceira
idade, quem diria? Senti a mistura de satisfação com medo da velhice. Até outro
dia eu aparentava muito menos idade do que denuncia meu RG. Será que preciso de
plástica, botóx, coisas assim? Já estava procurando o cartão do cirurgião
plástico em meio a caixas e pastas quando tocou meu celular. Atendi a chamada
de um número não identificado.
– Diva? Aqui é o Ernesto, amigo do seu pai, lembra de mim?
– Doutor Ernesto? Como vai o senhor?
– Bem, obrigado, querida. Telefonei para lhe avisar que você
esqueceu seu leque sobre a cadeira da repartição.
Foi então que juntei os fatos e compreendi que o velhinho
paquerador era ninguém menos que um grande amigo do meu pai, o Doutor Ernesto, médico
vascular. Minha cabeça rodou durante alguns segundos. Escolhi a saída de
emergência, fingi naturalidade. – Doutor, o senhor me desculpe, eu estava sem
meus óculos de grau, mas o achei tão familiar. Por que não falou comigo?
- Diva, liguei para devolver o seu leque e para lhe dizer
que você precisa cuidar de suas varizes! Mulheres de meia idade, após a
menopausa, precisam redobrar os cuidados com a circulação. Se quiser, posso
indicar um cirurgião da minha equipe.
A ficha caiu. Mas, a ficha caiu como um bloco de concreto
bem pesado. Varizes, eu? Meia idade eu? Pós menopausa eu? Que desilusão! Há instantes eu me sentia uma espécie de musa do vovô!
- Ah, obrigada, Doutor, eu entrarei em contato com o senhor
assim que chegar o outono, pode deixar. Como vai a família? Como vai sua
senhora? Como vai a vida? Obrigada por sua atenção. O leque? Ah, eu passarei um
dia desses no seu consultório para buscá-lo. Ah, sim tomaremos um cafezinho.
Obrigada, um abraço, tenha um bom dia.
Tive pensamentos compulsivos! Botóx? Preenchimento facial?
Peeling de diamante? Ácido retinóico? Silicone? Um bom psiquiatra? Escolhi outra
alternativa. Fui embora pra casa, fiz minha malinha e fui pra praia. Passei o
final de semana bronzeando minhas pernas, ou melhor, minhas varizes. Indignada.
Indignadíssima! Que varizes? Eu não tenho varizes!
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