Coisa boba e tão comum escrever um desabafo em um pedacinho
de papel e depois rasgá-lo, jogá-lo no vaso sanitário, queimá-lo em uma espécie
de ritual do fogo, picar o papel tão miudinho que nem mesmo o mais hábil perito
técnico possa juntar os pedacinhos.
Ela escrevia poesias, declarações de amor dessas que fingem
não ter destinatários. Depois amassava, rasgava e mandava pra dentro da
privada.Até que um dia, simplesmente rasgou a poesia em partes
graúdas e atirou-a na lixeira do banheiro de modo descuidado. Pedaços de papel grandes
o bastante para que pudessem ser reunidos em partes, tal e qual um
quebra-cabeças.
Distraída, sequer reparou nesse detalhe: a palavra “amor” e
a palavra “vida” estavam legíveis, íntegras, apesar do recipiente imundo que as
acolheu. Quando o lixo foi deixado na calçada, à espera da coleta, um gatinho
rasgou o saco plástico à caça de restos de comida. Os pedaços do papel da poesia
voaram pela calçada, deslizaram na sarjeta e dobraram a esquina.
No ponto do ônibus estava a Manuela, desiludida e pensando
bobagem, quem sabe atirar-se debaixo de um carro, ou tomar veneno? O vento
soprou na sua direção e aquele pedacinho de papel escrito “vida” caiu a seus
pés. Papel cor-de-rosa, caneta esferográfica azul. Manuela abaixou-se e recolheu o papel. Em seu trajeto até o escritório leu e releu a palavra "vida", enquanto refletia sobre a importância de viver e a tolice que estava prestes a cometer.
E de pensar que uma poesia picotada teria o dom de salvar a
vida de alguém? É por isso que tudo o que é escrito com a alma, ainda que não
seja publicado, ainda que seja deletado, ou rasgado, tem a missão de despertar sentimentos. Toda poesia tem destinatário certo, ainda que esse destinatário seja um desconhecido.
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