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Apresentação

Este blog nasceu no blog Janela das Loucas, onde assinava "Diva Latívia". Ali permaneci durante muito tempo, como autora principal das crônicas do blog. Redescobri que escrever é vital pra mim, guiada e editada por Abílio Manoel, cantor, compositor, cineasta e meu querido amigo. O Janela das Loucas não existe mais, Abílio foi embora pro Céu. Escrevo porque tenho esse dom divino, mas devo ao Abílio este blog, devo ao Abílio a saudade que me acompanha diariamente. Fiz e faço deste blog uma homenagem a aquele que se tornou meu irmão, de alma e coração. Aqui o tema é variado: cotidiano, relacionamentos e comportamento, em prosa e versos.







8 de mai. de 2014

A BURSA DA SUNTINHA

Admirei longamente as fotos antigas. Um tanto empoeiradas, sei disso, amareladas pelo tempo também, mas fiz uma viagem incrível ao passado.
A casa de praia, os amigos do tempo de infância e adolescência. As festas de Natal, meus irmãos e primos. Eis que encontrei aquela fotografia, Ana Assunta e eu. Ana Assunta, a Suntinha, era minha amiga dos tempos do ginásio, ou ensino fundamental como se diz agora. Ruiva de olhos muito verdes, aquelas sardas em seu nariz a tornaram a garota mais bonita do colégio. Sabe lá o que é ser a amiga inseparável da garota mais bonita do colégio? Isso significa que eu estava cercada de gatinhos lindos, todos de olho nela e não em mim. Eu, no máximo, era a vela, a mala, a amiga legal da garota mais bonita do colégio. Eu legal? Esqueçam! Eu, alta demais, loira demais, sem sardas demais, olhos azuis demais, não era nem ruiva, nem sardenta e muito menos fazia o sucesso da Suntinha. Complexei!
Todo garoto que me interessava estava, de fato, interessado na minha amiga. Eu era o trampolim para alcançar a profundeza daquele olhar verde, tão verde quanto o verde de nossas matas. Quando algum deles estava a fim da Suntinha logo se aproximava de mim, caminho rápido para alcançá-la. As festinhas, os encontros da turma, todos os eventos da moçada lá estávamos as duas. Eu, toda produzida, ela de cara lavada, jeans e camiseta e arrasando na pista. Sim, ela dançava muito bem. E eu? Eu era desajeitada, desengonçada, sem ritmo nem compasso e, no máximo, atraía a atenção do Júlio Henrique, o nerd da classe. Adorava minhas poesias, achava minha caligrafia linda e nem se importava com meus reincidentes erros aritméticos. Detalhe: ele era baixinho e tinha mau hálito.
Até que eu era bonitinha, mas talvez as grossas lentes de meus óculos de grau escondessem minha formosura. Meus cabelos, sempre indisciplinados, a mania de amarrar o blusão do uniforme na cintura para esconder o tamanho da bunda. Enfim, eu era o oposto da Suntinha. Pra completar, eu jamais perdia a piada, adorava fazer piada. Isso me tornava a garota legal e divertida. Legal e sem namorado.
Depois desse tempo de colégio, cada uma seguiu seu caminho. Suntinha foi pra faculdade de artes e eu fui estudar letras. Durante um longo período perdemos o contato. Naquele tempo não existia e-mail, celular, nem Facebook. Até que um dia nos encontramos no metrô, ela voltando da faculdade e eu indo pra biblioteca, onde fazia um bico para ajudar a pagar meu curso universitário. Papo vai, papo vem, ela me contou que andava com dor no joelho, coisa de ex-bailarina. Trocamos nossos números de telefone fixo e duas semanas depois ela telefonou pra mim. Combinamos irmos juntas à consulta médica com um ortopedista, ela precisava apurar a causa da dor e inflamação no joelho. Lá fomos as duas, ela a contar suas aventuras, os gatinhos que colecionava aos montes, pra variar. E eu só tinha um assunto: livros, livros e mais livros. Notei o quanto meu papo estava desinteressante, mas o que mais eu poderia falar com alguém que não via há exatos três anos?
O consultório do ortopedista era razoável. Razoável significa que não era lá grande coisa, era uma dessas clínicas ortopédicas na área central da cidade, que atendem convênios médicos de todo o tipo. Sala de espera lotada, tratei logo de abrir uma revista e mergulhar na leitura. Suntinha roía as unhas de modo irritante e fazia bolinha com o chiclete. Ela e seu jeito despojado. Um cara não tirava os olhos dela. Um? Não! Acho que todos os caras presentes não tiravam os olhos dela.
Na sala do médico ela explicou seu problema. O joelho esquerdo inchado, vermelho, algo um tanto assustador. Eu ali, a observar sem abrir a boca, afinal eu era apenas companhia para dar um apoio e nada mais. O doutor fez perguntas e mais perguntas e, antes de fazer o pedido de exames arriscou um primeiro diagnóstico: - Aninha... Posso te chamar assim, querida?
E eu só pensando: - Outro que capotou por ela, que trouxa!... Dãr!
O doutor continuou: - Ao que tudo indica, você tem um problema na “bursa”.
Juro, quando eu escutei isso, que ela tinha um problema na “bursa”, comecei a rir descontroladamente. O homem ficou sério, ela um tanto enfurecida.
Bursa? Logo imaginei que de tanto colecionar gatinhos o problema fosse uma doença venérea que tivesse descido até o joelho.
Precisei sair da sala, de tanto rir eu quase perdi o ar. Não conseguia parar de pensar na palavra engraçada: bursa!
Na sala de espera, dez minutos depois, chegou uma Suntinha revoltadíssima. – Bursa, sua maldosa, não é isso o que você está imaginando. Estou muito ofendida e muito arrependida de ter te chamado pra vir aqui. Sua invejosa!
Foi a última vez que encontrei a Suntinha. Nos despedimos na porta do consultório, ela muito zangada. Quando cheguei em casa, já que naquele tempo não existia o Google, procurei na Enciclopédia Barsa o que queria dizer bursa. Resposta: “é uma pequena bolsa cheia de líquido (sinóvia) localizada no ponto em que um músculo ou tendão roça um osso”.
O que posso fazer? Um nome horrível desses, eu pensei o mesmo que muita gente pensaria! Juro que não comecei a rir por mal! Jamais senti inveja, nem das sardas, muito menos da bursa dela!
Já são mais de vinte anos. Onde estará a Suntinha, como estará sua bursa?

É nisso o que dá rever essas fotos, voltei ao tempo da Barsa!

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