Admirei longamente as fotos antigas. Um tanto empoeiradas,
sei disso, amareladas pelo tempo também, mas fiz uma viagem incrível ao
passado.
A casa de praia, os amigos do tempo de infância e
adolescência. As festas de Natal, meus irmãos e primos. Eis que encontrei
aquela fotografia, Ana Assunta e eu. Ana Assunta, a Suntinha, era minha amiga
dos tempos do ginásio, ou ensino fundamental como se diz agora. Ruiva de olhos
muito verdes, aquelas sardas em seu nariz a tornaram a garota mais bonita do
colégio. Sabe lá o que é ser a amiga inseparável da garota mais bonita do colégio?
Isso significa que eu estava cercada de gatinhos lindos, todos de olho nela e
não em mim. Eu, no máximo, era a vela, a mala, a amiga legal da garota mais
bonita do colégio. Eu legal? Esqueçam! Eu, alta demais, loira demais, sem
sardas demais, olhos azuis demais, não era nem ruiva, nem sardenta e muito
menos fazia o sucesso da Suntinha. Complexei!
Todo garoto que me interessava estava, de fato, interessado
na minha amiga. Eu era o trampolim para alcançar a profundeza daquele olhar
verde, tão verde quanto o verde de nossas matas. Quando algum deles estava a
fim da Suntinha logo se aproximava de mim, caminho rápido para alcançá-la. As
festinhas, os encontros da turma, todos os eventos da moçada lá estávamos as
duas. Eu, toda produzida, ela de cara lavada, jeans e camiseta e arrasando na
pista. Sim, ela dançava muito bem. E eu? Eu era desajeitada, desengonçada, sem
ritmo nem compasso e, no máximo, atraía a atenção do Júlio Henrique, o nerd da
classe. Adorava minhas poesias, achava minha caligrafia linda e nem se
importava com meus reincidentes erros aritméticos. Detalhe: ele era baixinho e
tinha mau hálito.
Até que eu era bonitinha, mas talvez as grossas lentes de
meus óculos de grau escondessem minha formosura. Meus cabelos, sempre indisciplinados,
a mania de amarrar o blusão do uniforme na cintura para esconder o tamanho da
bunda. Enfim, eu era o oposto da Suntinha. Pra completar, eu jamais perdia a
piada, adorava fazer piada. Isso me tornava a garota legal e divertida. Legal e
sem namorado.
Depois desse tempo de colégio, cada uma seguiu seu caminho.
Suntinha foi pra faculdade de artes e eu fui estudar letras. Durante um longo
período perdemos o contato. Naquele tempo não existia e-mail, celular, nem
Facebook. Até que um dia nos encontramos no metrô, ela voltando da faculdade e
eu indo pra biblioteca, onde fazia um bico para ajudar a pagar meu curso
universitário. Papo vai, papo vem, ela me contou que andava com dor no joelho,
coisa de ex-bailarina. Trocamos nossos números de telefone fixo e duas semanas
depois ela telefonou pra mim. Combinamos irmos juntas à consulta médica com um
ortopedista, ela precisava apurar a causa da dor e inflamação no joelho. Lá fomos
as duas, ela a contar suas aventuras, os gatinhos que colecionava aos montes,
pra variar. E eu só tinha um assunto: livros, livros e mais livros. Notei o
quanto meu papo estava desinteressante, mas o que mais eu poderia falar com
alguém que não via há exatos três anos?
O consultório do ortopedista era razoável. Razoável
significa que não era lá grande coisa, era uma dessas clínicas ortopédicas na
área central da cidade, que atendem convênios médicos de todo o tipo. Sala de
espera lotada, tratei logo de abrir uma revista e mergulhar na leitura.
Suntinha roía as unhas de modo irritante e fazia bolinha com o chiclete. Ela e
seu jeito despojado. Um cara não tirava os olhos dela. Um? Não! Acho que todos
os caras presentes não tiravam os olhos dela.
Na sala do médico ela explicou seu problema. O joelho
esquerdo inchado, vermelho, algo um tanto assustador. Eu ali, a observar sem
abrir a boca, afinal eu era apenas companhia para dar um apoio e nada mais. O
doutor fez perguntas e mais perguntas e, antes de fazer o pedido de exames
arriscou um primeiro diagnóstico: - Aninha... Posso te chamar assim, querida?
E eu só pensando: - Outro que capotou por ela, que trouxa!...
Dãr!
O doutor continuou: - Ao que tudo indica, você tem um
problema na “bursa”.
Juro, quando eu escutei isso, que ela tinha um problema na “bursa”,
comecei a rir descontroladamente. O homem ficou sério, ela um tanto enfurecida.
Bursa? Logo imaginei que de tanto colecionar gatinhos o
problema fosse uma doença venérea que tivesse descido até o joelho.
Precisei sair da sala, de tanto rir eu quase perdi o ar. Não
conseguia parar de pensar na palavra engraçada: bursa!
Na sala de espera, dez minutos depois, chegou uma Suntinha
revoltadíssima. – Bursa, sua maldosa, não é isso o que você está imaginando.
Estou muito ofendida e muito arrependida de ter te chamado pra vir aqui. Sua invejosa!
Foi a última vez que encontrei a Suntinha. Nos despedimos na
porta do consultório, ela muito zangada. Quando cheguei em casa, já que naquele
tempo não existia o Google, procurei na Enciclopédia Barsa o que queria dizer bursa.
Resposta: “é uma pequena bolsa cheia de líquido (sinóvia) localizada no ponto
em que um músculo ou tendão roça um osso”.
O que posso fazer? Um nome horrível desses, eu pensei o mesmo
que muita gente pensaria! Juro que não comecei a rir por mal! Jamais senti
inveja, nem das sardas, muito menos da bursa dela!
Já são mais de vinte anos. Onde estará a Suntinha, como
estará sua bursa?
É nisso o que dá rever essas fotos, voltei ao tempo da
Barsa!
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