Talvez eu, há algum tempo, tenha lhes contado sobre o incêndio na lavanderia de meu apartamento, em um bairro da cidade de São Paulo. Talvez sim, talvez não.
Creio que a grande quantidade de textos, vez ou outra, confunde esta blogueira que teima em contar-lhes casos e "causos". Mesmo assim, contarei essa história ocorrida há uns... Dez, doze anos? Não sei ao certo, quem sabe isso tenha acontecido há quinze anos?
Jamais tive tendência suicida, muito menos fui piromaníaca. Talvez, o ensinamento de minha mãe tenha sido válido durante algumas décadas de minha existência. Algo mais ou menos assim: "criança que mexe com fogo faz xixi na cama". Medrosa, sempre tive receio de me queimar. Até mesmo para utilizar o fogão sempre fui até demais cautelosa. Mas, naquela tarde eu estava tão desconsolada, tão desorientada por conta do fim do relacionamento que escutei o conselho de uma prima e decidi por fim em todos os papéis, em todas as lembrancinhas miudinhas que havia ganhado do meu ex-namorado. Uma espécie de ritual da despedida, eu deveria repetir mentalmente que o passado se transformava em cinzas, que eu estava ali para queimar as lembranças e abrir-me para um futuro novo e promissor.Isso é que foi desespero, não é mesmo caro leitor? Pois é. Realmente, eu precisava virar a página e, tão desparafusada que estava, achei excelente a ideia do ritual pirotécnico.
Apartamentos são gaiolas amontoadas vertical e horizontalmente. Naquele edifício residiam, mais ou menos, oitenta famílias. Multiplique isso por três, ou seja, ao menos três pessoas em cada apartamento. Portanto, duzentas e quarenta pessoas eram minhas vizinhas naquele mesmo prédio.
Aos prantos, recolhi tudo o que me fazia lembrar do dito cujo. Uma poesia de Neruda, fotografias de momentos felizes, um CD de músicas românticas, uma blusinha de cor azul que ele tinha me dado no dia dos namorados, um vidro de perfume que ele trouxe de algum free shop por aí e percebam esse detalhe: fiz isso depois de beber sozinha uma garrafa inteirinha do melhor vinho tinto, também oferta generosa do rapaz. A garrafa eu lancei dentro do tanque de lavar roupas, que naquela altura dos acontecimentos era o recipiente escolhido para o início da queimação do meu carma. Assim eu pensava: eu ia queimar o meu carma amoroso com aquela criatura.
Aos prantos, busquei a caixa de fósforos. Piquei miudinho, mas bem picadinho, cada pedacinho de papel. A caixa do CD, enquanto eu soluçava descontroladamente, pisei e esmigalhei com meus pés. O CD não partia nem com reza brava, desisti e também mandei pra dentro do tanque. A blusa eu ainda piquei com uma tesoura. Enfim, uma cena digna de algum desses quadros humorísticos televisivos, mas ai de quem naquele instante ousasse rir de mim, creio que eu estava tão pirada que seria capaz de cometer outras muitas loucuras. Tudo pra dentro do tanque, risquei o fósforo. Rapidamente as chamas começaram a consumir tudo aquilo. O material plástico do CD produziu uma fumaça escura, com forte cheiro. Depressa abri a janela da área de serviço. Lá embaixo, na garagem, alguém notou a fumaça e começou a gritar: - Fogo!
Eu tentei apressar o pequeno incêndio, para evitar alguma confusão, mas era tarde demais.O vidro de perfume explodiu. O apartamento estava coberto de fumaça e eu tossia sem parar. Não demorou muito, ouvi a sirene dos bombeiros. Tentei me desfazer das provas, mas eu estava bêbada, intoxicada com a fumaça e não conseguia fazer nada senão, naquela altura, rir e chorar. Sim, eu ria e chorava ao mesmo tempo.
Bombeiros, ao menos aqueles bombeiros do meu incêndio, são muito simpáticos. Fui levada a um hospital público, desses hospitais caóticos. O tempo todo o sargento do Corpo de Bombeiros ao meu lado. Papo vai, papo vem, contei o motivo do incêndio que havia provocado. Solidário, o rapaz apenas sorria como quem diz: coitada, está bêbada e é doida de pedra.
Nem preciso dizer que levei multa do condomínio, não é? Mas, o ritual funcionou. Sim, funcionou. Sem mais ter aquele CD que entoava canções memoráveis, sem mais ter a blusinha azul que eu vestia pra dormir e me sentir por ele abraçada, sem mais ter a poesia de Neruda escrita com a caligrafia dele, sem mais ter o perfume que eu usava e passava o dia todo a lembrar de quem já era. Apenas lamentei ter destruído a mangueira da máquina de lavar roupas, isso deu trabalho no dia seguinte.
Fiquei com fama de maluca no prédio, algo que me deixou um tanto orgulhosa. Nada melhor do que ser doida, isso deixa os curiosos distantes e os faladores com medo de retaliação.
Se eu o esqueci? Não exatamente. Superei, o que é muito melhor do que esquecer. Lembro, claro que sim, mas o associo a esse ritual. Portanto, quando lembro da criatura eu começo a rir sem parar. Eu, a maluca incendiária que quase botou fogo no edifício inteiro. Coisa de mulher apaixonada e que não mede as consequências. Leitor, leitora, jamais tente fazer o mesmo em casa.
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