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Era um dia ensolarado, estávamos as duas, minha mãe e eu, sentadas no chão do quarto. Havia várias revistas espalhadas ao nosso redor, as figuras me encantavam. Qual era a minha idade? Não mais que cinco anos. Peguei uma das revistas e fingi ler: A, E, I, O , U! As letrinhas eram verdes. Verdes? Acho que sim. Minha mãe, dedos longos, mãos bem cuidadas, apontou: -Esta é a letra A. - E esta letra aqui, mãe?- É a letra B! Juntei as letrinhas, pouco a pouco. Observei o sorriso satisfeito daquela “quase-uma-garota”, jovem demais pra ser mãe de quatro filhos. Exclamei o nome da revista: BURDA!
Não havia pote de geleia, manchete de jornal, placa de rua que eu não tentasse ler. Foi assim que aproveitei a distração do meu pai. A máquina de escrever, uma Olivetti, estava desacompanhada, sem nenhum adulto para vigiá-la. O papel, com metade de um trabalho datilografado, facilmente foi por mim retirado. Tentei recolocar o papel, o carrinho da máquina correu pra direita e um sininho tentou me delatar: tlim!
Assustada, tratei de me apressar. Letra A! Fiquei maravilhada, lá estava estampada a minha escolha! Toquei todas as letrinhas que pude, por fim as teclas se engancharam umas nas outras. Analisei o objeto. Descobri o segredo e abri o compartimento que protegia o rolo de tinta de cor vermelha e preta. Puxei o rolo, carimbei meus dedos , que limpei no encosto da cadeira.
Eu precisava escrever BURDA, a palavra mais bonita que conhecia, a minha palavra! O rolo de tinta não mais encaixava no mesmo lugar. Parecia uma serpentina capaz de sujar os dedos, o tapete, a colcha de cama e as paredes. Tudo tinha a minha digital! Diante da minha impotência, resolvi esconder o mal feito. Empurrei a máquina pra debaixo da cama. Por cima joguei o roupão de banho do meu pai. Desci a escada, me esquivando dos adultos da casa.
No banheiro esfreguei as mãos de modo vigoroso e persistente, o sabonete misturado à tinta de cor escura mudou de tom, estava meio lilás. Gastei metade do sabonete, a água corria da torneira fazendo um chuá digno de chamar quem por ali passava. De novo a vovó, sempre ela! Achou que eu estivesse brincando com a água. Falou da conta altíssima, do dinheiro que não era capim. E eu tentando esconder as minhas unhas, ainda azuladas. Cada minuto parecia uma eternidade. Eu precisava voltar ao quarto, esconder melhor a máquina!
Chegou a hora do jantar, quando meu pai sentava-se à cabeceira da mesa, ao meu lado. Uma prece rápida, para agradecer a refeição. – Diva, diga amém! Eu não conseguia dizer uma só palavra. – O que há com você, menina? - Comecei a chorar escandalosamente, afinal eu certamente ficaria de castigo, levaria umas chineladas no traseiro e sequer tinha atingido o meu objetivo!
- Eu queria escrever BURDA!
- Agora não é hora de escrever, é hora de jantar. Tome toda a sopa!
Eu olhava pro prato de sopa e nele caíam minhas lágrimas. Canja à la choradeira, esse deveria ser o nome do prato. Meu irmão, sarcástico, arriscou: - Pai, ela tá chorando porque mataram a galinha, amiga dela, pra fazer canja. E emendou: - Ela morreu! Morreu! Morreu!
Saí correndo da mesa, subi a escada mais depressa do que pude, entrei no quarto dos meus pais, bati a porta e girei a chave. Estava lá, trancada, protegida, sã e salva. Ninguém poderia me alcançar, ninguém veria a máquina debaixo da cama!
Uma hora de negociação. – Abra a porta, querida. – Abra a porta, meu bem. – Abra a porta, garota. – Abra, senão vou derrubar a porta!
Foi nesse dia que, pela primeira vez, ouvi um palavrão: PUTA QUE PARIU! Foi isso o que o papai gritou quando passei pra ele, por baixo da porta, a chave. Ele entrou no quarto e encontrou aquele cenário caótico, com marcas de tinta e a ausência da máquina de escrever.
Chinelada dói, mas sempre achei que castigo doía muito mais. Castigo significava não assistir aos episódios de Perdidos No Espaço, em preto e branco, no televisor da sala. Castigo também significava que, durante muito tempo, eu teria que conviver com o olhar zangado do meu pai, algo que me assombrava terrivelmente.
Outro dia, estava eu na banca de jornal da praça, aquela mesma banca onde eu comprava gibis durante a minha infância. Resolvi folhear uma revista e deparei-me com ninguém menos que ela, a revista BURDA. Deixei de lado a revista e fui sentar em um banco pertinho da igreja. A velocidade do passar do tempo tomou conta de mim e da minha palavra preferida. Olhei ao redor, o cenário moderno, tantos carros, tanta gente estranha. BURDA! A casa foi demolida, no lugar nasceu um edifício com vários andares. BURDA! Meu pai partiu pro céu, depois minha mãe o acompanhou. BURDA, sinônimo de SAUDADE!
Aqui você encontrará temas ligados a comportamento, relacionamentos e cotidiano.
É proibida a reprodução não autorizada dos textos deste blog, de acordo com a Lei nº9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que regula os direitos autorais.
Apresentação
Este blog nasceu no blog Janela das Loucas, onde assinava "Diva Latívia". Ali permaneci durante muito tempo, como autora principal das crônicas do blog. Redescobri que escrever é vital pra mim, guiada e editada por Abílio Manoel, cantor, compositor, cineasta e meu querido amigo. O Janela das Loucas não existe mais, Abílio foi embora pro Céu. Escrevo porque tenho esse dom divino, mas devo ao Abílio este blog, devo ao Abílio a saudade que me acompanha diariamente. Fiz e faço deste blog uma homenagem a aquele que se tornou meu irmão, de alma e coração. Aqui o tema é variado: cotidiano, relacionamentos e comportamento, em prosa e versos.
14 de fev. de 2012
MINHA PALAVRA PREFERIDA
Era um dia ensolarado, estávamos as duas, minha mãe e eu, sentadas no chão do quarto. Havia várias revistas espalhadas ao nosso redor, as figuras me encantavam. Qual era a minha idade? Não mais que cinco anos. Peguei uma das revistas e fingi ler: A, E, I, O , U! As letrinhas eram verdes. Verdes? Acho que sim. Minha mãe, dedos longos, mãos bem cuidadas, apontou: -Esta é a letra A. - E esta letra aqui, mãe?- É a letra B! Juntei as letrinhas, pouco a pouco. Observei o sorriso satisfeito daquela “quase-uma-garota”, jovem demais pra ser mãe de quatro filhos. Exclamei o nome da revista: BURDA!
Não havia pote de geleia, manchete de jornal, placa de rua que eu não tentasse ler. Foi assim que aproveitei a distração do meu pai. A máquina de escrever, uma Olivetti, estava desacompanhada, sem nenhum adulto para vigiá-la. O papel, com metade de um trabalho datilografado, facilmente foi por mim retirado. Tentei recolocar o papel, o carrinho da máquina correu pra direita e um sininho tentou me delatar: tlim!
Assustada, tratei de me apressar. Letra A! Fiquei maravilhada, lá estava estampada a minha escolha! Toquei todas as letrinhas que pude, por fim as teclas se engancharam umas nas outras. Analisei o objeto. Descobri o segredo e abri o compartimento que protegia o rolo de tinta de cor vermelha e preta. Puxei o rolo, carimbei meus dedos , que limpei no encosto da cadeira.
Eu precisava escrever BURDA, a palavra mais bonita que conhecia, a minha palavra! O rolo de tinta não mais encaixava no mesmo lugar. Parecia uma serpentina capaz de sujar os dedos, o tapete, a colcha de cama e as paredes. Tudo tinha a minha digital! Diante da minha impotência, resolvi esconder o mal feito. Empurrei a máquina pra debaixo da cama. Por cima joguei o roupão de banho do meu pai. Desci a escada, me esquivando dos adultos da casa.
No banheiro esfreguei as mãos de modo vigoroso e persistente, o sabonete misturado à tinta de cor escura mudou de tom, estava meio lilás. Gastei metade do sabonete, a água corria da torneira fazendo um chuá digno de chamar quem por ali passava. De novo a vovó, sempre ela! Achou que eu estivesse brincando com a água. Falou da conta altíssima, do dinheiro que não era capim. E eu tentando esconder as minhas unhas, ainda azuladas. Cada minuto parecia uma eternidade. Eu precisava voltar ao quarto, esconder melhor a máquina!
Chegou a hora do jantar, quando meu pai sentava-se à cabeceira da mesa, ao meu lado. Uma prece rápida, para agradecer a refeição. – Diva, diga amém! Eu não conseguia dizer uma só palavra. – O que há com você, menina? - Comecei a chorar escandalosamente, afinal eu certamente ficaria de castigo, levaria umas chineladas no traseiro e sequer tinha atingido o meu objetivo!
- Eu queria escrever BURDA!
- Agora não é hora de escrever, é hora de jantar. Tome toda a sopa!
Eu olhava pro prato de sopa e nele caíam minhas lágrimas. Canja à la choradeira, esse deveria ser o nome do prato. Meu irmão, sarcástico, arriscou: - Pai, ela tá chorando porque mataram a galinha, amiga dela, pra fazer canja. E emendou: - Ela morreu! Morreu! Morreu!
Saí correndo da mesa, subi a escada mais depressa do que pude, entrei no quarto dos meus pais, bati a porta e girei a chave. Estava lá, trancada, protegida, sã e salva. Ninguém poderia me alcançar, ninguém veria a máquina debaixo da cama!
Uma hora de negociação. – Abra a porta, querida. – Abra a porta, meu bem. – Abra a porta, garota. – Abra, senão vou derrubar a porta!
Foi nesse dia que, pela primeira vez, ouvi um palavrão: PUTA QUE PARIU! Foi isso o que o papai gritou quando passei pra ele, por baixo da porta, a chave. Ele entrou no quarto e encontrou aquele cenário caótico, com marcas de tinta e a ausência da máquina de escrever.
Chinelada dói, mas sempre achei que castigo doía muito mais. Castigo significava não assistir aos episódios de Perdidos No Espaço, em preto e branco, no televisor da sala. Castigo também significava que, durante muito tempo, eu teria que conviver com o olhar zangado do meu pai, algo que me assombrava terrivelmente.
Outro dia, estava eu na banca de jornal da praça, aquela mesma banca onde eu comprava gibis durante a minha infância. Resolvi folhear uma revista e deparei-me com ninguém menos que ela, a revista BURDA. Deixei de lado a revista e fui sentar em um banco pertinho da igreja. A velocidade do passar do tempo tomou conta de mim e da minha palavra preferida. Olhei ao redor, o cenário moderno, tantos carros, tanta gente estranha. BURDA! A casa foi demolida, no lugar nasceu um edifício com vários andares. BURDA! Meu pai partiu pro céu, depois minha mãe o acompanhou. BURDA, sinônimo de SAUDADE!
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