Pensei em contar-lhes o que se passou comigo. Como eu já
disse uma vez por aqui: ah, já que o blog é meu, então abusarei do olhar aqui
derramado – o seu olhar, caro leitor – e entregarei um pedacinho de minha
história contemporânea.
A casa antiga, de meus falecidos pais, está à venda. Um
imóvel que foi o cenário de muitas alegrias, muitos encontros de parentes e
amigos, paredes que assistiram a décadas da minha vida e da vida da minha
família.
Todas as vezes que entro na casa sinto algo parecido com o
que um ator sente ao ver o teatro vazio, sem plateia. Os espetáculos foram ali
encenados, houve aplausos e alegria, mas hoje as luzes estão apagadas e não há
um espetáculo em cartaz. Fiquei para apagar essas luzes, eu e toda a imensidão
do vazio ao meu redor. Muitos textos escrevi ali, em meu antigo quarto. Muita
inspiração brotou naquele endereço, uma rua tranquila da cidade de São Paulo.
Semana passada, depois de muita hesitação, eu me enchi de
coragem e decidi buscar todas as fotografias antigas, guardadas no alto de um
armário no aposento que foi o escritório do meu pai. Peguei uma escada, fiz uma
espécie de prece para reforçar a coragem e deparei-me com muitas caixas de
papelão, todas com um conteúdo que, pra mim, era um verdadeiro mistério.
Segredos de minha mãe, talvez. Objetos bem guardados, uma herança de valor
estimativo incalculável. Fotografias, fitas de vídeo, fitas cassetes, LPs de
músicas clássicas, bonecas de porcelana, papéis aos montes dentro de pastas.
Desci da escada com meu coração aos pulos, talvez a mesma
sensação de quem desenterrou um tesouro. Aquilo tudo estava ali guardado há
muitos anos, sem que ninguém tivesse ousado profanar um santuário de memórias
significativas, importantes para meus antepassados.
Fiquei ali no escritório parada, olhei pro alto durante
muito tempo e admirei à distância a confusão daquele amontoado de relíquias.
Voltei ao topo da escada e puxei uma das caixas de papelão, aliás muito pesada.
Dentro estavam os álbuns de fotografia. Sentei-me no chão e abri o álbum de
fotos de casamento dos meus pais. Lindos, jovens, sorridentes, eternizados. A casa
de meus avós ali ainda existia, todos jovens em seus sorrisos, havia a certeza
da eternidade.
Não sei quanto tempo esqueci da vida e me deixei levar pelo
passado e por minha fértil imaginação e insaciável curiosidade. Uma lágrima
teimosa desceu pelo meu rosto, saudade aperta muito o coração e inunda os olhos
feito um mar. Enxuguei as lágrimas com o dorso de minha mão. Uma poeira fininha
e muito preta cobria aquelas fotos, todas elas. Decidi trazer pra minha casa o
meu tesouro, para organizar e guardar comigo aquele mundo de lembranças em
preto e branco.
Um apartamento pequeno não comporta tantas recordações, mas
dei um jeito de empurrar documentos e toda minha papelada para um lado e
ajeitei como pude aquela caixa de papelão no canto da sala. De vez em quando eu
pegava um álbum, outro, uma foto e outra, mostrei para meus amigos do Facebook
o quanto eu era bonitinha em meus tempos de criança, a noiva bonita que foi
minha mãe, meus irmãos ainda pequenos.
No dia seguinte amanheci com meus olhos muito vermelhos,
coçavam sem parar. Logo deduzi: alergia, só pode ser isso. Fiz uma compressa de
água fria, mas nada parecia amenizar o desconforto, que piorou tanto que
precisei ir ao oftalmologista. O diagnóstico: conjuntivite viral. Medicada e
cheia de recomendações médicas, passei a cuidar-me com mais atenção e a tentar
descobrir como que fotografias antigas podiam ter infectado meus olhos.
Isso completou uma semana, já estou melhor, mas continuo com
os olhos inundados de um mar de lágrimas a cada nova foto que admiro, afinal pra
saudade não existe remédio.
Cheguei à conclusão de que a conjuntive aconteceu por culpa
do vírus, mas especialmente porque doeu muito ver a vida perfeita flagrada por
flashes de momentos únicos e mágicos. Momentos que hoje pertencem a um passado
muito longínquo e cujos personagens envelheceram, ou faleceram. De fato, eu preferia não ter visto nada disso,
apesar de gostar muito das fotos de minha família.
Não é à toa que minha mãe guardou aqueles pertences no alto
de um armário e fechou a porta para não mais olhar aquilo tudo. Tento imaginar
quantas vezes minha mãe chorou ao olhar aquelas fotografias. Com meus olhos
irritados e somados às lágrimas de orfandade, guardei a caixa de papelão em um
armário bem alto de minha casa, para o futuro, ou quem sabe para nunca mais.
Episódio verídico ocorrido comigo, que por aqui assino Diva
Latívia. Hoje voltei ao cenário do passado e resisti à necessidade de novamente
trazer comigo recordações empoeiradas. Passado e presente, entre nós a poeira
de recordações muitas.