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Apresentação

Este blog nasceu no blog Janela das Loucas, onde assinava "Diva Latívia". Ali permaneci durante muito tempo, como autora principal das crônicas do blog. Redescobri que escrever é vital pra mim, guiada e editada por Abílio Manoel, cantor, compositor, cineasta e meu querido amigo. O Janela das Loucas não existe mais, Abílio foi embora pro Céu. Escrevo porque tenho esse dom divino, mas devo ao Abílio este blog, devo ao Abílio a saudade que me acompanha diariamente. Fiz e faço deste blog uma homenagem a aquele que se tornou meu irmão, de alma e coração. Aqui o tema é variado: cotidiano, relacionamentos e comportamento, em prosa e versos.







5 de jun. de 2014

POEIRA DAS LEMBRANÇAS

Pensei em contar-lhes o que se passou comigo. Como eu já disse uma vez por aqui: ah, já que o blog é meu, então abusarei do olhar aqui derramado – o seu olhar, caro leitor – e entregarei um pedacinho de minha história contemporânea.
A casa antiga, de meus falecidos pais, está à venda. Um imóvel que foi o cenário de muitas alegrias, muitos encontros de parentes e amigos, paredes que assistiram a décadas da minha vida e da vida da minha família.
Todas as vezes que entro na casa sinto algo parecido com o que um ator sente ao ver o teatro vazio, sem plateia. Os espetáculos foram ali encenados, houve aplausos e alegria, mas hoje as luzes estão apagadas e não há um espetáculo em cartaz. Fiquei para apagar essas luzes, eu e toda a imensidão do vazio ao meu redor. Muitos textos escrevi ali, em meu antigo quarto. Muita inspiração brotou naquele endereço, uma rua tranquila da cidade de São Paulo.
Semana passada, depois de muita hesitação, eu me enchi de coragem e decidi buscar todas as fotografias antigas, guardadas no alto de um armário no aposento que foi o escritório do meu pai. Peguei uma escada, fiz uma espécie de prece para reforçar a coragem e deparei-me com muitas caixas de papelão, todas com um conteúdo que, pra mim, era um verdadeiro mistério. Segredos de minha mãe, talvez. Objetos bem guardados, uma herança de valor estimativo incalculável. Fotografias, fitas de vídeo, fitas cassetes, LPs de músicas clássicas, bonecas de porcelana, papéis aos montes dentro de pastas.
Desci da escada com meu coração aos pulos, talvez a mesma sensação de quem desenterrou um tesouro. Aquilo tudo estava ali guardado há muitos anos, sem que ninguém tivesse ousado profanar um santuário de memórias significativas, importantes para meus antepassados.
Fiquei ali no escritório parada, olhei pro alto durante muito tempo e admirei à distância a confusão daquele amontoado de relíquias. Voltei ao topo da escada e puxei uma das caixas de papelão, aliás muito pesada. Dentro estavam os álbuns de fotografia. Sentei-me no chão e abri o álbum de fotos de casamento dos meus pais. Lindos, jovens, sorridentes, eternizados. A casa de meus avós ali ainda existia, todos jovens em seus sorrisos, havia a certeza da eternidade.
Não sei quanto tempo esqueci da vida e me deixei levar pelo passado e por minha fértil imaginação e insaciável curiosidade. Uma lágrima teimosa desceu pelo meu rosto, saudade aperta muito o coração e inunda os olhos feito um mar. Enxuguei as lágrimas com o dorso de minha mão. Uma poeira fininha e muito preta cobria aquelas fotos, todas elas. Decidi trazer pra minha casa o meu tesouro, para organizar e guardar comigo aquele mundo de lembranças em preto e branco.
Um apartamento pequeno não comporta tantas recordações, mas dei um jeito de empurrar documentos e toda minha papelada para um lado e ajeitei como pude aquela caixa de papelão no canto da sala. De vez em quando eu pegava um álbum, outro, uma foto e outra, mostrei para meus amigos do Facebook o quanto eu era bonitinha em meus tempos de criança, a noiva bonita que foi minha mãe, meus irmãos ainda pequenos.
No dia seguinte amanheci com meus olhos muito vermelhos, coçavam sem parar. Logo deduzi: alergia, só pode ser isso. Fiz uma compressa de água fria, mas nada parecia amenizar o desconforto, que piorou tanto que precisei ir ao oftalmologista. O diagnóstico: conjuntivite viral. Medicada e cheia de recomendações médicas, passei a cuidar-me com mais atenção e a tentar descobrir como que fotografias antigas podiam ter infectado meus olhos.
Isso completou uma semana, já estou melhor, mas continuo com os olhos inundados de um mar de lágrimas a cada nova foto que admiro, afinal pra saudade não existe remédio.
Cheguei à conclusão de que a conjuntive aconteceu por culpa do vírus, mas especialmente porque doeu muito ver a vida perfeita flagrada por flashes de momentos únicos e mágicos. Momentos que hoje pertencem a um passado muito longínquo e cujos personagens envelheceram, ou faleceram.  De fato, eu preferia não ter visto nada disso, apesar de gostar muito das fotos de minha família.
Não é à toa que minha mãe guardou aqueles pertences no alto de um armário e fechou a porta para não mais olhar aquilo tudo. Tento imaginar quantas vezes minha mãe chorou ao olhar aquelas fotografias. Com meus olhos irritados e somados às lágrimas de orfandade, guardei a caixa de papelão em um armário bem alto de minha casa, para o futuro, ou quem sabe para nunca mais.
Episódio verídico ocorrido comigo, que por aqui assino Diva Latívia. Hoje voltei ao cenário do passado e resisti à necessidade de novamente trazer comigo recordações empoeiradas. Passado e presente, entre nós a poeira de recordações muitas.

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