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O rádio-relógio não despertou às 06h40, horário impiedoso, que desrespeitava o cansaço semanal, com momentos espremidos e compromissos infindáveis. Todos os dias ela se levantava da cama ainda tonta de sono, preparava o café, enquanto organizava mentalmente os compromissos da manhã. Naquele dia, a reunião com um cliente importante estava agendada para as 09h00. Na véspera, assim que saiu do escritório, foi ao cabeleireiro, fez as unhas, retocou a tinta dos cabelos e fez uma escova. Sua aparência deveria estar impecável. Quando foi dormir, o sono teimava em não acompanhá-la, adormeceu depois das 02h00.
Abriu os olhos, eram 07h25. O rádio-relógio foi omisso, não despertou. Desistiu de preparar o café, depressa tomou um banho, não teve tempo suficiente para arrumar a cama, vestiu um tailleur azul claro, não encontrou a pulseira de madrepérola, que tão bem combinava com o tom de azul.
Já estava dentro do táxi quando percebeu que tinha esquecido sobre a mesa da cozinha o celular. Sentiu um frio na barriga, sem o celular não poderia atender chamadas importantes. Pensou em voltar e buscá-lo, mas já estava perto do escritório, eram 08h35. A pressa a tornava esquecida, era sempre assim.
A reunião, enfadonha como eram todas as reuniões de negócios. A todo instante observava o olhar do cliente para si, intrigada. Um olhar que parecia dirigido às suas pernas. Lembrou que o mesmo episódio havia acontecido na portaria do seu prédio, quando um vizinho passou por ela e a mirou de cima abaixo. Depois, o taxista parecia, sorrateiramente, observá-la pelo espelho retrovisor. Sentiu um certo desconforto, um traço de insegurança.
Assim que terminou a reunião, voltou pra sua sala, respirou fundo. Sempre que relaxava, esticava as pernas. Aproveitou a privacidade do momento, a solidão de sua sala, fez um leve alongamento, esticando os braços, movimentando os pulsos, depois o pescoço, para direita e para a esquerda. Foi assim que olhou para o chão, em direção aos pés. As pantufas cor-de-rosa, de bichinho, ela havia comprado recentemente. Pareciam bênçãos para seus pés cansados. Naquele dia, as pantufinhas seguiram em seus pés pelas ruas, dentro do táxi, na calçada, na entrada do edifício comercial onde trabalhava. Em seus pés, atravessaram a recepção da empresa onde trabalhava, adentraram a sala da diretoria, depois a sala de reuniões, recepcionaram o cliente, ficaram ali, apontadas ostensivamente a cada cruzada de pernas.
Naquele mesmo dia comprou um despertador tradicional, aqueles de cordinha. O rádio-relógio, acompanhado das pantufas, foi atirado na lixeira. Um jeito de vingar-se daquele dia, o dia em que seus pés voltaram para casa felizes, relaxados, indiferentes ao seu constrangimento.
Aqui você encontrará temas ligados a comportamento, relacionamentos e cotidiano.
É proibida a reprodução não autorizada dos textos deste blog, de acordo com a Lei nº9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que regula os direitos autorais.
Apresentação
Este blog nasceu no blog Janela das Loucas, onde assinava "Diva Latívia". Ali permaneci durante muito tempo, como autora principal das crônicas do blog. Redescobri que escrever é vital pra mim, guiada e editada por Abílio Manoel, cantor, compositor, cineasta e meu querido amigo. O Janela das Loucas não existe mais, Abílio foi embora pro Céu. Escrevo porque tenho esse dom divino, mas devo ao Abílio este blog, devo ao Abílio a saudade que me acompanha diariamente. Fiz e faço deste blog uma homenagem a aquele que se tornou meu irmão, de alma e coração. Aqui o tema é variado: cotidiano, relacionamentos e comportamento, em prosa e versos.
14 de mar. de 2012
DE TAILLEUR E PANTUFINHAS
O rádio-relógio não despertou às 06h40, horário impiedoso, que desrespeitava o cansaço semanal, com momentos espremidos e compromissos infindáveis. Todos os dias ela se levantava da cama ainda tonta de sono, preparava o café, enquanto organizava mentalmente os compromissos da manhã. Naquele dia, a reunião com um cliente importante estava agendada para as 09h00. Na véspera, assim que saiu do escritório, foi ao cabeleireiro, fez as unhas, retocou a tinta dos cabelos e fez uma escova. Sua aparência deveria estar impecável. Quando foi dormir, o sono teimava em não acompanhá-la, adormeceu depois das 02h00.
Abriu os olhos, eram 07h25. O rádio-relógio foi omisso, não despertou. Desistiu de preparar o café, depressa tomou um banho, não teve tempo suficiente para arrumar a cama, vestiu um tailleur azul claro, não encontrou a pulseira de madrepérola, que tão bem combinava com o tom de azul.
Já estava dentro do táxi quando percebeu que tinha esquecido sobre a mesa da cozinha o celular. Sentiu um frio na barriga, sem o celular não poderia atender chamadas importantes. Pensou em voltar e buscá-lo, mas já estava perto do escritório, eram 08h35. A pressa a tornava esquecida, era sempre assim.
A reunião, enfadonha como eram todas as reuniões de negócios. A todo instante observava o olhar do cliente para si, intrigada. Um olhar que parecia dirigido às suas pernas. Lembrou que o mesmo episódio havia acontecido na portaria do seu prédio, quando um vizinho passou por ela e a mirou de cima abaixo. Depois, o taxista parecia, sorrateiramente, observá-la pelo espelho retrovisor. Sentiu um certo desconforto, um traço de insegurança.
Assim que terminou a reunião, voltou pra sua sala, respirou fundo. Sempre que relaxava, esticava as pernas. Aproveitou a privacidade do momento, a solidão de sua sala, fez um leve alongamento, esticando os braços, movimentando os pulsos, depois o pescoço, para direita e para a esquerda. Foi assim que olhou para o chão, em direção aos pés. As pantufas cor-de-rosa, de bichinho, ela havia comprado recentemente. Pareciam bênçãos para seus pés cansados. Naquele dia, as pantufinhas seguiram em seus pés pelas ruas, dentro do táxi, na calçada, na entrada do edifício comercial onde trabalhava. Em seus pés, atravessaram a recepção da empresa onde trabalhava, adentraram a sala da diretoria, depois a sala de reuniões, recepcionaram o cliente, ficaram ali, apontadas ostensivamente a cada cruzada de pernas.
Naquele mesmo dia comprou um despertador tradicional, aqueles de cordinha. O rádio-relógio, acompanhado das pantufas, foi atirado na lixeira. Um jeito de vingar-se daquele dia, o dia em que seus pés voltaram para casa felizes, relaxados, indiferentes ao seu constrangimento.
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2 comentários:
Excelente! Muito bom mesmo.
E pelo menos não eram pantufas daquelas com cabeça de ursinho! hehehe
Parabéns!
Ulisses,
O elogio vindo de você, um escritor sensacional, é pra mim estímulo, pra que eu continue a escrever. Obrigada!
Beijo
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