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Há vários dias ando reclusa. Fiz da minha casa uma espécie de clausura. Nada santa, sem vocação para freira, afinal muito mais pareço com Whoopi Goldberg no filme Mudança de Hábito. Lembrei agora do antigo seriado de TV, coisa do final dos anos 60, começo dos anos 70, A Noviça Voadora. Irmã Bertrine, ou algo assim, voava com aquele chapéu, ou véu, parecido com orelhas caídas. A minha vontade de voar, agora passa pela lembrança já ter voado. Voei do alto do pé de pitanga direto pro chão. Infância, que saudade dessa época! Naquele tempo os ossos pareciam ser flexíveis, resistentes, as articulações não estalavam e nem rangiam. Estive olhando fotos antigas, do tempo de criança. Para comparar o passar de tantas décadas de vida, coloquei ao lado uma foto minha atual. O meu sorriso e o meu olhar continuam os mesmos. Talvez, olhar menos inocente, menos brilhante. O que eu estaria pensando, quando clicaram aquele flagrante? Estava eu sentada no banco do jardim, ao lado dos meus irmãos. Sei apenas o que penso agora: vontade de voltar no tempo, ser criança novamente, brincar de corre-corre, me pendurar nas árvores do casarão que foi demolido há muito tempo. Ter comigo os meus irmãos, todos eles. Doce infância, eu te quero de volta, apesar do bicho-papão. Meus medos de outrora, esses parecem brinquedos diante dos medos de agora.
Decidi lembrar quais eram os meus passatempos favoritos daquela época. Na TV os filmes eram em preto e branco, os televisores eram à válvula. Isso demorava um tempão pra funcionar, primeiro a coisa tinha que esquentar. A antena era externa, a cada chuva ou ventania, ela virava ou tombava sobre o telhado. E lá ia alguém consertar. A gritaria era inevitável! Vira mais. Passou, volta. Mais pra direita! Tá bom agora! Quando não funcionava, o jeito era apelar pra antena interna, com palha de aço, o famigerado Bombril, nas pontas das hastes. Eu assistia Jeannie É Um Gênio, A Feiticeira, Lassie. Ouso dizer que assisti aos episódios do Vigilante Rodoviário. Tudo parece agora jurássico, antigo feito a minha foto sorrindo ao lado de meus irmãos. Dinossauros. Meus monstros agora são tiranossauros rex, esfomeados, soltos pelos labirintos do dia a dia: trânsito, contas, relatórios, prazos, impotência diante da dor alheia. Volto o meu olhar pra minha foto de agora. Nem parece que já sou uma senhora, uso franja, jeans, camiseta, coroa moderna, modelo 1961, motor original e, pasmem, sem air bag.
O notebook, quem diria que isso um dia existiria? Creio, dentro de uns 30, 40 anos, a comunicação será toda feita pelo pensamento. Por isso mesmo, melhor desde agora eu mentalizar algo bom. Penso na cura do câncer. Flávio, meu pequeno, meu irmão querido. Penso na sua salvação e me ajeito melhor na poltrona da sala. Há de haver uma solução! Queria voar novamente, pra terra do faz de conta, onde a doença era catapora, o trânsito era de bonecas espalhadas pelo chão, as filas eram de figurinhas daqueles álbuns de coleção. A alegria tinha aroma natalino e éramos invencíveis feito o nosso herói, Nacional Kid. Hoje, o único voo que faço é de avião. Volto à realidade com o toque do celular. Quase perco a hora da reunião. Ajeito a franja e vou embora, sem voo, sem tempo. Uma senhora.
Aqui você encontrará temas ligados a comportamento, relacionamentos e cotidiano.
É proibida a reprodução não autorizada dos textos deste blog, de acordo com a Lei nº9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que regula os direitos autorais.
Apresentação
Este blog nasceu no blog Janela das Loucas, onde assinava "Diva Latívia". Ali permaneci durante muito tempo, como autora principal das crônicas do blog. Redescobri que escrever é vital pra mim, guiada e editada por Abílio Manoel, cantor, compositor, cineasta e meu querido amigo. O Janela das Loucas não existe mais, Abílio foi embora pro Céu. Escrevo porque tenho esse dom divino, mas devo ao Abílio este blog, devo ao Abílio a saudade que me acompanha diariamente. Fiz e faço deste blog uma homenagem a aquele que se tornou meu irmão, de alma e coração. Aqui o tema é variado: cotidiano, relacionamentos e comportamento, em prosa e versos.
5 de out. de 2011
VIDA VOADORA
Há vários dias ando reclusa. Fiz da minha casa uma espécie de clausura. Nada santa, sem vocação para freira, afinal muito mais pareço com Whoopi Goldberg no filme Mudança de Hábito. Lembrei agora do antigo seriado de TV, coisa do final dos anos 60, começo dos anos 70, A Noviça Voadora. Irmã Bertrine, ou algo assim, voava com aquele chapéu, ou véu, parecido com orelhas caídas. A minha vontade de voar, agora passa pela lembrança já ter voado. Voei do alto do pé de pitanga direto pro chão. Infância, que saudade dessa época! Naquele tempo os ossos pareciam ser flexíveis, resistentes, as articulações não estalavam e nem rangiam. Estive olhando fotos antigas, do tempo de criança. Para comparar o passar de tantas décadas de vida, coloquei ao lado uma foto minha atual. O meu sorriso e o meu olhar continuam os mesmos. Talvez, olhar menos inocente, menos brilhante. O que eu estaria pensando, quando clicaram aquele flagrante? Estava eu sentada no banco do jardim, ao lado dos meus irmãos. Sei apenas o que penso agora: vontade de voltar no tempo, ser criança novamente, brincar de corre-corre, me pendurar nas árvores do casarão que foi demolido há muito tempo. Ter comigo os meus irmãos, todos eles. Doce infância, eu te quero de volta, apesar do bicho-papão. Meus medos de outrora, esses parecem brinquedos diante dos medos de agora.
Decidi lembrar quais eram os meus passatempos favoritos daquela época. Na TV os filmes eram em preto e branco, os televisores eram à válvula. Isso demorava um tempão pra funcionar, primeiro a coisa tinha que esquentar. A antena era externa, a cada chuva ou ventania, ela virava ou tombava sobre o telhado. E lá ia alguém consertar. A gritaria era inevitável! Vira mais. Passou, volta. Mais pra direita! Tá bom agora! Quando não funcionava, o jeito era apelar pra antena interna, com palha de aço, o famigerado Bombril, nas pontas das hastes. Eu assistia Jeannie É Um Gênio, A Feiticeira, Lassie. Ouso dizer que assisti aos episódios do Vigilante Rodoviário. Tudo parece agora jurássico, antigo feito a minha foto sorrindo ao lado de meus irmãos. Dinossauros. Meus monstros agora são tiranossauros rex, esfomeados, soltos pelos labirintos do dia a dia: trânsito, contas, relatórios, prazos, impotência diante da dor alheia. Volto o meu olhar pra minha foto de agora. Nem parece que já sou uma senhora, uso franja, jeans, camiseta, coroa moderna, modelo 1961, motor original e, pasmem, sem air bag.
O notebook, quem diria que isso um dia existiria? Creio, dentro de uns 30, 40 anos, a comunicação será toda feita pelo pensamento. Por isso mesmo, melhor desde agora eu mentalizar algo bom. Penso na cura do câncer. Flávio, meu pequeno, meu irmão querido. Penso na sua salvação e me ajeito melhor na poltrona da sala. Há de haver uma solução! Queria voar novamente, pra terra do faz de conta, onde a doença era catapora, o trânsito era de bonecas espalhadas pelo chão, as filas eram de figurinhas daqueles álbuns de coleção. A alegria tinha aroma natalino e éramos invencíveis feito o nosso herói, Nacional Kid. Hoje, o único voo que faço é de avião. Volto à realidade com o toque do celular. Quase perco a hora da reunião. Ajeito a franja e vou embora, sem voo, sem tempo. Uma senhora.
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2 comentários:
Que texto gostoso de ler......voei literalmente pra minha infância.....que delicia que era....
Lindo texto que nos faz voar.....
Beijos
Somos irmãs por opção e de coração. Amigos são assim, Isis. Bem que podíamos ter sido vizinhas, assim teríamos voado da pitangueira juntas...rs...
Obrigada pelo seu comentário!
Beijo
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